Nossa abordagem
A construção de uma proposta de historicização dos direitos humanos não é uma tarefa fácil. Os processos históricos que podem estar associados a este direitos são carregados de controvérsias e profundamente marcados por conjunturas específicas. Sua linha mestra são valores culturais ocidentais, e, apesar do aparente consenso internacional que se formou para sua aprovação em 1948, por todo o globo encontramos os mais diversos e profundos desafios para que sejam atendidos e até mesmo compreendidos. Em muitos casos a reivindicação da defesa das liberdades individuais, da “dignidade ante a barbárie” atenderam - e atendem ainda - a interesses econômicos, políticos e ideológicos, o que o torna ainda mais controverso. Mas o que são afinal estes direitos, e até que ponto podemos abordar a grande diversidade de conceitos, valores, interpretações e direitos que por fim passaram a ser convencionalmente chamados dessa forma? Giuseppe Tosi, quando em busca de responder o que vem a ser “esses tais de direitos humanos”, deixou claro que:
[...] podemos afirmar que não temos uma “definição conceitual” do que são os direitos humanos, não porque tal definição não exista, mas justamente porque existem várias maneiras de fundamentar e definir os direitos. O que se delimita aqui - para emprestar sem muito rigor uma terminologia própria da epistemologia - é um “campo teórico” (BOURDIEU) ou “campo hermenêutico" (GADAMER), ou mesmo um “paradigma”em sentido amplo, isto é, um conjunto de textos, interpretações, princípios, conceitos, linguagens, valores e questões suscitadas pela reflexão coletiva, interdisciplinar, teórica e prática, sobre os direitos humanos, que delimitam um campo particular. (Tosi, 2010, in Ferreira, Zenaide e Pequeno, 2010, p.68)
Dentro dessa perspectiva, mais que um simples conceito, perceber os direitos humanos como um campo em si mesmo, com seus próprios paradigmas e dificuldades, pode vir a ser um caminho interessante para a pesquisa, pois que estes direitos, novamente em acordo com Tosi, “são mais do que meros direitos no sentido estrito da palavra; são valores que orientam o próprio direito, e que o Estado e a sociedade civil procuram realizar através das instituições” (2010). Sabemos que abordar um conjunto de valores em nome de um determinado avanço civilizatório não é, em definitivo, uma novidade na história do ocidente, ao contrário, foi este, por muitas vezes no passado o caminho de trágicas armadilhas e grandes flagelos infligidos pelo homem contra o homem.
Tosi nos evidencia, ainda nesta mesma passagem, o quanto estes direitos estão por sua vez fortemente atrelados a alguns dos valores mais caros ao mundo ocidental, que fazem parte de uma espécie de objetivo civilizatório.
O conjunto de “valores republicanos” (respeito às leis, respeito ao bem público, sentido de responsabilidade no exercício do poder) e de “valores democráticos” (amor à igualdade e horror aos privilégios, a aceitação da vontade da maioria e o respeito às minorias) constitui o ethos coletivo que tem como seu horizonte o respeito integral aos direitos humanos. (Tosi, 2010, in Ferreira, Zenaide e Pequeno, 2010, p.67)
Percebemos também, que os direitos humanos possuem muitas dimensões, o que se torna ainda mais evidente quando nossa intenção é a sua aplicação a problemas relacionados à educação. Os direitos humanos, por mais que tenham servido de argumento e pretextos políticos e de dominação, são hoje um dos meios pelos quais grupos, etnias, minorias, comunidades e indivíduos buscam reconhecimento e legitimação. Existe uma discussão ontológica dos direitos humanos, uma antropológica, outra dimensão ética e outra ainda política, como defendido por Ferreira, Zenaide e Pequeno (2010). E podemos afirmar que existem ainda as possibilidades de discussão desses direitos por uma perspectiva especificamente materialista. Podemos também pensá-los exclusivamente pela filosofia do direito e a história do pensamento, ou do direito positivo propriamente dito, ou ainda, através das conquistas específicas dos direitos civis (bandeira fortemente ligada ao liberalismo) e dos direitos sociais (bandeira fortemente ligada ao socialismo). Podemos também simplesmente tratá-los como inexistentes na realidade social, ou um devaneio metafísico, como enfatizavam seus críticos já desde o século XVIII, ou ainda como uma utopia civilizatória.
Como construir então uma historicização desses direitos? Que caminho seguir?
Optamos, neste primeiro capítulo, levando em conta todas essas questões, localizar historicamente os leitores no contexto histórico de alguns dos conceitos essenciais que envolvem essa discussão e de algumas problematizações importantes a serem feitas para uma maior compreensão do tema.
A sequência cronológica na qual as diferentes concepções de jusnaturalismo, direitos naturais, direitos dos homens e direitos humanos foram abordadas aqui, foi uma escolha objetivando a organização e compreensão das ideias, e não como uma apologia dessa cronologia referente a um suposto avanço histórico de uma mesma ideia, num sentido único, de “progresso” e “evolução”, ou da construção de uma grande história desses conceitos. Esta escolha visa destacar as ideias e abordagens destes conceitos pela sua pertinência à pesquisa dos direitos humanos, e, que por vezes, foram referidos em diferentes tempos com o objetivo de justificar a argumentação, interesses e contextos daqueles pensadores e juristas, que se apropriaram desses discursos para as suas próprias defesas, e que naquele intuito, ganham sentidos diferentes ou até contrários aquelas ideias nas quais se embasam, não permitindo nem ao menos, por exemplo, considerá los uma permanência de longo prazo em relação aos direitos naturais. Estamos cientes de que a historicização desses direitos não se restringem também, apenas pela análise de documentos numa concepção positivista, ou aos estudos descolados da realidade social. De acordo com Tosi (2010),
[...] o paradoxo dos direitos humanos reside justamente no contraste entre o movimento de universalização, multiplicação e especificação crescente das solenes declarações e o aumento generalizado das violações e do desrespeito aos direitos humanos. Quantas vezes na academia se faz uma história conceitual, deslocada da história social, uma abordagem do direito internacional a partir somente dos tratados, uma análise da democracia separada das condições materiais, um discurso sobre a paz perpétua que desconhece as guerras reais, separando assim o mundo ideal do mundo real. (Tosi, 2010; in Ferreira, Zenaide e Pequeno, 2010, p. 59)
Portanto, retornando então ao raciocínio acerca das múltiplas dimensões destes direitos e de suas múltiplas facetas, fica ainda a impressão de que eles tratam “de tudo, e de nada”. Mas afirmar suas limitações é imprescindível, e em muitos momentos será a âncora que não nos permitirá sair “à deriva”. Como já dito, “[...] se “tudo” é direitos humanos, “nada” é direitos humanos, o que pode gerar certa frustração prática e uma insuficiência teórica.” (VILLEY, 2007 apud Tosi, 2010; in Ferreira, Zenaide e Pequeno, 2010, p. 60). Quais seriam portanto as limitações a estes direitos? Segundo Tosi:
Os limites são dados pelo próprio pacto social que fundamenta o Estado de Direito e que encontra a sua expressão máxima na Constituição, que se situa entre o “direito natural” e o “direito positivo”: ela é expressão da “soberania popular”, mas é ao mesmo tempo subtraída à “vontade da maioria” para garantir o respeito das minorias e as cláusulas pétreas que impedem a “tirania democrática” (BOBBIO, 1995, apud Tosi, 2010). (Tosi, 2010, in Ferreira, Zenaide e Pequeno, 2010, p.68).
Dessa maneira, e em concordância com este posicionamento ante estes direitos, não abordaremos apenas as declarações e os tratados em si. Escolhemos a abordagem através de uma seleção de documentos de grande importância para o estabelecimento desses direitos em nível global, de documentos estabelecidos em âmbito local, através dos fóruns da Organização dos Estados Americanos (OEA), da legislação brasileira signatária e alinhada a essas agendas, tratados e pactos. Não temos a pretensão de abarcar todos os documentos relacionados a estes direitos, pois são centenas de tratados, convenções, pactos, declarações, petições e decretos, o que nos afastaria de nosso real objetivo que vem a ser compreender uma possível perspectiva histórica desses direitos e não sua banalização através de uma cronologia do processo de positivação desses direitos.
A sequência será esta: após breve contextualização conceitual dos direitos naturais, do direito positivo, do jusnaturalismo e da evolução do uso dos termos “direitos do homem” e “direitos humanos” durante a modernidade, faremos, com o respaldo de trabalhos produzidos no âmbito da filosofia e da filosofia do direito, a discussão da Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão (1791), e a Declaração dos Direitos Humanos da ONU (1948). Dado este contexto internacional, passaremos a discussão localizada através dos pactos estabelecidos em nível local, derivados da declaração de 1948, e firmados no contexto da OEA, e sua introdução no direito brasileiro. Por fim, partiremos da Constituição de 1988 para a relação e estabelecimento de uma legislação pautada em direitos humanos no Brasil.
Os direitos naturais e os direitos positivos
Há uma evidente relação histórica estabelecida entre os direitos naturais, o jusnaturalismo e o que chamamos hoje de direitos humanos, assim como há também uma importância central no processo de positivação desses direitos, que é essencial a compreensão da natureza dos direitos humanos na atualidade.
Mas o que são os direitos naturais e de que forma estão posicionados em relação aos direitos positivos previstos nas ordenações legais dos Estados? De acordo com Bobbio (1998),
O Jusnaturalismo é uma doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um "direito natural" (ius naturale), ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito positivo). Este direito natural tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer. O Jusnaturalismo é, por isso, uma doutrina antitética à do "positivismo jurídico", segundo a qual só há um direito, o estabelecido pelo Estado, cuja validade independe de qualquer referência a valores éticos. (BOBBIO, 1998, p.656)
O direito natural e o jusnaturalismo podem ser compreendidos portanto da mesma maneira. São aqueles direitos supostamente existentes “antes mesmo da ordenação dos homens em sociedade”. É defendido enquanto eterno, universal, imutável e independente de uma ordenação legal dos Estados. Uma das concepções de direito natural que abordaremos aqui tem origem dentro de uma tradição cultural greco-romana e sofreu modificações, pensado por diferentes abordagens filosóficas durante a história antiga e medieval europeias, e foi modificado intrinsecamente aos processos históricos e aos conceitos de razão, sujeito, individualismo, entre outros, e em cada contexto histórico reafirmado com novos contornos e rupturas que serviram a diversos interesses, inscritos, cada um deles, em seu tempo.
O Jusnaturalismo, presente igualmente em Platão e, se bem que incidentalmente, também em Aristóteles, foi elaborado, na cultura grega, principalmente pelos estóicos, para quem toda a natureza era governada por uma lei universal racional e imanente; conhecemos a sua doutrina sobre este ponto sobretudo pela divulgação que Cícero dela fez em Roma, em páginas que exerceram uma influência decisiva no pensamento cristão dos primeiros séculos, no pensamento medieval e nas primeiras doutrinas jusnaturalistas modernas. (BOBBIO, 1998, p.656)
De acordo com Bobbio, “o jusnaturalismo é uma expressão perigosamente equívoca, porque o seu significado, tanto filosófico como político, se revela assaz diverso consoante as várias concepções do direito natural” (BOBBIO, 1998, p.656). Dessa maneira, apresentamos na sequência, algumas das concepções mais presentes e de grande repercussão. Bobbio identifica ao menos três versões distintas de argumentação que fundamenta as diversas concepções de jusnaturalismo.
Na história da filosofia jurídico-política, aparecem pelo menos três versões fundamentais, também com suas variantes: a de uma lei estabelecida por vontade da divindade e por esta revelada aos homens; a de uma lei "natural" em sentido estrito, fisicamente co-natural a todos os seres animados à guisa de instinto; finalmente, a de uma lei ditada pela razão, específica portanto do homem que a encontra autonomamente dentro de si. (BOBBIO, 1998, p.656)
É crucial na abordagem do conceito dos direitos naturais, que se tenha em mente que a ideia de um direito natural é definida em total contraposição a ideia de um direito positivo. Esta posição oposta em absoluto é relevante, considerando que ao estudarmos os processos históricos ligados ao estabelecimento dos ditos direitos humanos, e que ganhou novos contornos pelo pensamento ocidental moderno, estes passam a ser considerados legítimos e nascidos apenas quando de sua positivação (ou seja, sua transformação em ordenamento jurídico propriamente dito) através das declarações do século XVIII, que analisaremos mais à frente. A resposta à qual seria a fundamentação para o nascimento dos direitos do homem, se situa neste encontro, nessa confluência dos direitos naturais e do direito positivo, é uma das chaves para a compreensão desses direitos.
Segundo Bobbio, ao menos desde a Grécia Antiga, esta contraposição entre o direito natural e o direito positivo é evidenciada.
As primeiras manifestações de lusnaturalismo se dão na antiga Grécia. A figura de Antígona, na tragédia homônima de Sófocles, converte-se como que em símbolo disso: ela se recusa a obedecer às ordens do rei, porque julga que, sendo ordens da autoridade política, não podem sobrepor-se às eternas, às dos deuses. A afirmação da existência de um "justo por natureza" que se contrapõe ao "justo por lei" é depois completada por vários sofistas, que já desde então entendem o "justo por natureza" de diversas maneiras, com consequências políticas diferentes. (BOBBIO, 1998, p.656)
Em Aristóteles os direitos são concebidos dentro de uma concepção que leva em conta duas dimensões possíveis da racionalidade: “[...] a teórica e a prática''. “A primeira se refere à construção do conhecimento sobre a realidade, enquanto a segunda se refere ao julgamento prático, ou seja, como agir na esfera moral e política”. (BANNEL, 2010, p.84). Sempre, no caso de discordância entre as duas visões, a segunda deve prevalecer, estando esta, por sua vez, relacionada à racionalidade relativa à argumentação em defesa do direito natural. Silva propõe que:
Aristóteles distingue o direito natural do direito positivo. O direito natural se refere às ações boas ou más em si mesmas; por isso tem uma validade universal ao estabelecer aquilo que é justo ou injusto. O direito positivo ou legal, ao contrário, refere-se às ações indiferentes, (ações que antes de serem estabelecidas pelas normas civis, conforme o direito natural, não são nem boas nem más em si mesmas). Ele possui uma validade particular e mutável. Aristóteles diz também que se houver uma discordância entre o direito natural e o direito positivo, dar-se-á preferência ao direito natural. (SILVA, 2005, p. 403)
Os pensadores e juristas romanos abordaram também os direitos naturais a partir de novos argumentos e fundamentações, mas, ainda sob forte influência do pensamento dos gregos. Ulpiano, jurista romano do século III a.C., foi grande influenciador das leis, de seu tempo até o império Bizantino, quando, aliás do estabelecimento das leis de Justiniano, já no século VI da era cristã. Bobbio salienta que:
[...] os juristas romanos tinham copiado do estoicismo a ideia de um direito natural que, no entanto, não aprofundaram. Um dos maiores, Ulpiano, desfigurou-a até profundamente ao definir o direito natural como "aquilo que a natureza ensinou a todos os seres animados", incluindo explicitamente entre estes também os irracionais. Isto reduzia o direito natural, antes que a uma norma de conduta, a um simples instinto, a uma necessidade de ordem física. (BOBBIO, 1998, p.656)
A abordagem romana mais influente ocorreu através da obra, do pensamento e da prática política de Cícero, durante o século II a.C. Segundo Bobbio, Cícero trouxe em seus escritos grande influência no que se refere a uma concepção racionalista desses direitos. De acordo com Bobbio “numa célebre passagem do De republica, Cícero defende a existência de uma lei "verdadeira", conforme à razão, imutável e eterna, que não muda com os países e com os tempos e que o homem não pode violar sem renegar a própria natureza humana.” (BOBBIO, 1998, p.656)
A partir da Idade Média, o conceito de direito natural não fora abandonado, mas, pelo contrário, passou a ser defendido de forma mais evidente, natural e generalizada, pois servia a um propósito muito claro e evidente para a fé cristã. Mas ao mesmo tempo em que este direito passava a ser defendido do ponto de vista de sua origem divina, incontestável e imutável, também observamos neste período os argumentos racionalistas emancipados das questões de fé ganhando direção e sentido argumentativo, dentro de seu contexto específico. Segundo Bobbio:
Ao lado da versão naturalista de Ulpiano e da versão racionalista de Cícero (bem como da que se devia a uma má interpretação de um tardio diálogo de Platão, de uma justiça imanente a todo o universo como princípio da sua harmonia), a Idade Média desenvolveu a doutrina de um direito natural que se identificava com a lei revelada por Deus a Moisés e com o Evangelho. (BOBBIO, 1998, p.657)
Entre as diferentes tradições filosóficas que conceberam a racionalidade em diversos momentos da história Europeia anteriores à modernidade, a ideia de que havia uma natureza (divina) exterior ao homem e que o comandava se mostrou dominante. Essa ideia entretanto flertava com o pensamento racionalista greco-romano, tornando a razão, dessa maneira, subordinada às “verdades divinas”, a natureza eterna e imutável dominada por Deus. Este pensamento possui como um de seus mais influentes representantes, Aurélio Agostinho de Hipona, que argumenta:
Aquela lei que é chamada a Razão suprema de tudo, [...] a noção impressa em nosso espírito dessa lei eterna, direi que ela é aquela lei em virtude da qual é justo que todas as coisas estejam perfeitamente ordenadas [...]. E tal lei superior é a única sobre a qual todas as leis temporais regulam as mudanças a serem introduzidas no governo dos homens [...] (AGOSTINHO, 1995, p. 41 e 42 apud SILVA, 2005, p. 404)
Da forma como fica claro no trecho acima, segundo Agostinho toda lei que se pretenda racional, deve buscar o fundamento em uma “racionalidade suprema”, ou seja, com argumento último nas questões relativas à fé cristã. É um pensamento teleológico, que transpassa a racionalidade dos direitos naturais, fundamentado por sua vez na moralidade daquela filosofia e de seus princípios.
Segundo a concepção estóico-cristã, existe uma lei natural que é considerada como pressuposto indispensável à reflexão teológico-filosófico-jurídica. O direito natural cristão encontrou seu fundamento filosófico na doutrina estóica da ordem divina do mundo, segundo a qual o universo é governado pelos deuses ou pelo logos. O homem é parte do universo. Santo Agostinho descreve o mundo como um sistema articulado hierarquicamente. Ele ainda acrescenta que há uma lei eterna à qual estão ordenadas todas as coisas e da qual a lei temporal extrai toda a sua força mediante a participação. (SILVA, 2005, p. 403 - 404)
Esta concepção estóico-cristã, medieval, foi rompida, ao menos retoricamente, apenas a partir de Tomás de Aquino, que reconhece a razão humana como irradiação da lei eterna, mas que, porém, dava ao poder da busca racional pela verdade, nos homens, um valor em si, inquestionável, pois que esta capacidade racional se tratava de uma “ordem imposta pela mente de Deus” (BOBBIO, 1998, p. 657). São Tomás defende que “toda criatura racional conhece a lei eterna por sua irradiação mais ou menos perfeita, pois todo conhecimento da verdade é irradiação e participação da lei eterna, que é a verdade imutável” (AQUINO, 1997, apud SILVA, 2005, p. 404)
Este argumento, inspirado em Santo Agostinho, porém, desenvolvido até mesmo em discordância com este por Tomás de Aquino, é que vai repercutir e ser evocado ao se fazer a defesa de uma natureza humana racional, porém até aqui, ainda sem uma emancipação desde de sua base argumentativa religiosa. Segundo Bobbio, portanto, o fim dessa “confusão” de ideias deve-se a “Santo Tomás de Aquino (século XIII) que interpretou como "lei natural" aquela fração da ordem imposta pela mente de Deus, governador do universo, que se acha presente na razão do homem: uma norma, portanto, racional” (BOBBIO, 1998, p.657).
No pensamento de Tomás de Aquino, se não percebemos ainda uma racionalidade a priori (como veremos entre os pensadores do do século XVII e do XVIII), independente das questões da fé, podemos ver uma racionalidade individualizada, parte da natureza de todos os homens e inquestionável, pois que essa é ‘irradiada” e “imposta” pela “mente de Deus” à todos. Esta é uma concepção de racionalidade que permitiu aos homens questionar o poder das leis do Estado utilizando argumento no seguinte sentido: os direitos naturais devem ser respeitados devido ao fato de sermos, por natureza, (mesmo que a natureza aqui tenha fundamento em deus) racionais. Dentro de seu devido contexto, Tomás de Aquino, não fazia esta abordagem, e não possuía a ideia de questionar o poder do Estado, até mesmo devido a conjuntura política da península itálica, e da (hoje) França durante o século XIII. Seus argumentos estavam mais direcionados à Igreja Católica e a governos tirânicos específicos de sua época, em busca do bem comum e da da lei justa, com base na lei natural. Como destaca Silva:
O Estado, segundo São Tomás, tem como fim o Bem Comum. E as suas leis visam não apenas à sobrevivência dos indivíduos, mas ao desenvolvimento da vida virtuosa de cada indivíduo. Quando as leis positivas não são expressão da lei eterna e não são reconhecidas como conformes à reta razão, então não obrigam o homem em consciência, visto que as leis positivas para serem válidas devem ser também justas, isto é, de acordo com a lei natural. (SILVA, 2005, p. 406)
A contraposição entre o direito positivo e o direito natural, e o fato de esses direitos serem a base de defesa dos homens contra os abusos da autoridade, já era defendida ao menos desde Aristóteles, como já dissemos, porém, o direito natural passa a ter como base argumentativa a racionalidade humana, mesmo que esta tenha um fundamento ontológico no divino. É importante destacar a observação feita por Bobbio, no sentido do uso descontextualizado do sentido de contestação do poder do Estado pelo jusnaturalismo, principalmente em relação ao objetivo do seu próprio autor, Tomás de Aquino. Bobbio diz:
Do Jusnaturalismo de Santo Tomás tem sido muitas vezes invocado o princípio (que na realidade fora enunciado por Santo Agostinho e que Santo Tomás aceitou com fortes limitações e reservas) de que uma lei positiva, diversa do direito natural e, por isso, injusta, não é uma verdadeira lei e não obriga. Tal princípio, muito além das intenções de Santo Tomás, foi muitas vezes alegado para contestar a validade das leis do Estado, quando este se opunha à Igreja; e há juristas e políticos católicos que ainda hoje o invocam. (BOBBIO, 1998, p.657)
A contestação das instituições políticas e sociais fortemente determinadas e institucionalizadas dentro do catolicismo, e principalmente do fato de esta doutrina e o poder historicamente estabelecidos terem se caracterizado de forma excludente, estamental, aristocrático, foi um campo fértil para a articulação de novos argumentos e a concepção de direitos naturais estabelecido na modernidade. O contexto das lutas religiosas da fundação de novas religiões cristãs, entre os séculos XIV e XVIII, para além das instituições e da suposta hegemonia cultural católica, foram decisivas no processo de desenvolvimento do conceito de direitos naturais. Mais que isso, e por mais contraditório que pareça, rompe-se a partir daqui, de acordo com as pesquisas de Bobbio (1998), o elo entre deus e a racionalidade. Este é um importante ponto de inflexão. Surge a partir daí a possibilidade da emancipação da razão para a cultura ocidental moderna, abrindo caminho para o humanismo e para os pensadores europeus do século XVIII, pensarem os direitos. Como destaca Silva:
O Renascimento, a Reforma Protestante e o Racionalismo são manifestações culturais que historicamente deram grande importância à categoria de indivíduo. O Renascimento, com seu caráter antropocêntrico, exalta a dignidade do homem e a sua vida intramundana em oposição ao dualismo antropológico medieval. A Reforma Protestante, sobretudo, o Calvinismo, com sua doutrina de emancipação da consciência do indivíduo, propõe uma ascese intramundana que orienta toda a vida do indivíduo em direção a Deus sem mediação da hierarquia eclesiástica. O Racionalismo, a partir do método empírico-analítico das ciências, propõe ao homem uma vida orientada unicamente pela Razão em oposição ao autoritarismo exercido pelo Estado e pela Igreja sobre as consciências dos indivíduos. (SILVA, 2005, p.)
Analisando este contexto, Hugo Grócio, jurista do Países Baixos, do século XVII, muitas vezes citado como “pai do direito internacional”, foi um defensor do direito natural e teve contribuição importante na elaboração das concepções modernas de direitos. Segundo Bobbio, a partir mais especificamente das concepções de direito natural de Hugo Grócio, podemos observar um rompimento mais definitivo entre razão e fé:
Foi justamente em polêmica com o voluntarismo das alas extremas do calvinismo que nasceu a doutrina usualmente considerada como origem do Jusnaturalismo moderno, a doutrina do holandês Hugo Grócio (Huig de Groot), enunciada no De iure belli ac pacis de 1625. Nesta obra, ao pôr o direito natural como fundamento de um direito que pudesse ser reconhecido como válido por todos os povos (aquilo que virá a ser o direito internacional), Grócio afirmou que tal direito é ditado pela razão, sendo independente não só da vontade de Deus como também da sua própria existência. Esta afirmação, tornada famosíssima, surgiu na época iluminista como revolucionária e precursora da nova cultura laica e antiteológica, a que o Jusnaturalismo de Grócio teria aberto o caminho no campo da moral, do direito e da política. (BOBBIO, 1998, p.657)
A partir da obra e do pensamento de Hugo Grócio, temos de fato um rompimento entre as perspectivas do direito natural antigo e medieval. Com esta abordagem moderna, podemos perceber inclusive certa continuidade para o processo de formação dos “direitos do homem”. Ainda de acordo com Bobbio “graças também à sua atualidade [de Grócio] como tratado sistemático de direito internacional e à fama que, como tal, obteve em toda a Europa, difundiu com grande eficácia a idéia de um direito "natural", ou seja, "não sobrenatural". (BOBBIO, 1998, p.657-658). Este direito passava a ter, ainda de acordo com Bobbio, sua fonte exclusiva de validade na “sua conformidade com a razão humana”. (BOBBIO, 1998, p.657-658).
A partir deste ponto se percebe claramente a introdução de argumentos que passam a justificar a necessidade de união de duas perspectivas importantes que serão decisivas em sentido direto para argumentação da necessidade do estabelecimento dos direitos “das gentes” (futuramente, “dos homens” e ainda mais a frente, “humanos”): a ideia de que para que exista de fato um direito internacional, este precisa estar ligado “às gentes”, e não aos Estados e as suas instituições políticas, preceitos religiosos, sociais, raciais, entre outros.
O filósofo inglês John Locke, também foi um grande influenciador da concepção de direitos naturais que teve grande repercussão para a fundamentação e argumentação dos direitos dos homens na modernidade. Como ressalta Silva (2005), sobre a tendência de valorização da racionalidade fundamentadora do direito natural. De acordo com Silva:
Na Carta acerca da Tolerância e no Segundo Tratado sobre o Governo, Locke pressupõe o direito natural como um dado factual e reconhecido pela razão humana, por isso, não se deteve a explicá-lo. Todavia, nos Ensaios sobre a lei natural, encontra-se uma análise minuciosa das normas da lei natural. Locke demonstra a existência da lei natural, examina as fontes de conhecimento das normas do direito natural, afirma o caráter obrigatório da obediência às normas derivadas do direito natural. (SILVA, 2005, p. 409)
Silva ressalta também que, segundo Locke, “Todas as coisas criadas por Deus são dotadas de finalidade. Por isso, os sentidos e o intelecto são faculdades cognitivas que visam ao conhecimento dos princípios da lei natural”. ( SILVA, 2005, p.412). Outro salto dado por Locke, diz respeito à forma como poderia o homem reconhecer o caráter verdadeiro dos direitos naturais, que para este se fundamenta na experiência e no próprio homem, dotado de “faculdades cognoscitivas”, mesmo que estas, segundo Locke, tenham como fundamento último a criação divina. Silva salienta, neste sentido que:
[...] Locke diz que a experiência sensível é a única via segura para a razão humana conhecer a lei natural (sensus), uma vez que “a alma é, no momento do nascimento do homem, uma tabula rasa”. A lei natural não se apresenta como algo evidente à experiência sensível, no entanto, os sentidos oferecem a matéria sensível para que a razão possa examinar os princípios do conhecimento da lei natural. O princípio fundamental que exerce a função de um primum principium na filosofia lockiana do qual derivam os princípios do direito natural é a relação do homem com Deus. Deus é um legislador que estabelece que cada coisa opere segundo a sua natureza. Sendo assim, Deus criou o homem dotado de faculdades cognoscitivas (sentidos e intelecto) a fim de que o homem possa garantir a sua sobrevivência na ordem da criação.(SILVA, 2005, p.412)
Importante considerarmos aqui a relevância e as contribuições ocorridas no contexto das guerras civis inglesas no século XVII, e de certa forma, do fato de que na história da própria formação da monarquia e do absolutismo inglês, esteve presente uma evidente disputa entre os reis, os nobres, os burgueses e o clero pelo participação nas decisões políticas. A contestação do poder real remontam ao menos a 1215, quando do esforço da nobreza no contexto da Revolta dos Barões em diminuir o acúmulo do poder real, algo que se tornou mais forte e passou a integrar outros setores da sociedade, como os puritanos burgueses que passaram a questionar profundamente os seguidos boicotes a representatividade do parlamento, da câmara dos comuns e do próprio absolutismo. A tradição monárquica inglesa esteve fundamentada desde muito cedo (considerando o contexto europeu como um todo), num constitucionalismo, no respeito às cartas, numa exigência do cumprimento de direitos ao povo, ou, senão ao povo em geral, numa perspectiva republicana, ao menos na limitação do poder do rei. Essa tônica marcou a criação de documentos importantes como o Bill of Rights e tudo o que este representou e contribuiu para o estabelecimento do parlamentarismo e dos direitos individuais na e da política de parte da Europa.
Podemos a partir daqui traçar uma de fato uma continuidade mais evidente entre as ideias modernas que fundamentam os direitos dos homens e as concepções do direito natural, salvo claro seus contextos. Ao menos desde a idade média europeia, principalmente pela influência de Hugo Grócio e John Locke, que, além de serem referenciados entre os pensadores do século XII, pressupõem claramente o homem enquanto livre e racional. De acordo com Bobbio:
Na realidade, entre o Jusnaturalismo antigo, medieval e moderno não existe qualquer fratura, existe antes uma substancial continuidade. É certo, no entanto, que o Jusnaturalismo moderno ressalta fortemente o aspecto subjetivo do direito natural, ou seja, os direitos inatos, deixando obumbrado seu correspondente aspecto objetivo, o da norma, em que haviam geralmente insistido os jusnaturalistas antigos e medievais e até o próprio Grócio. É precisamente devido a esta sua característica que o Jusnaturalismo moderno, isto é, o dos séculos XVII e XVIII, molda profundamente as doutrinas políticas de tendência individualista e liberal, expondo com firmeza a necessidade do respeito por parte da autoridade política daqueles que são declarados direitos inatos do indivíduo. (BOBBIO, 1998, p.657-658)
Esta concepção está fortemente presente no contratualismo moderno, mesmo que por vezes, como no caso de Hobbes, utilizada para a legitimação do direito positivo, estabelecido pelo rei, (sempre mais importante para este, que o antes do natural). Segundo Bobbio, o contratualismo considera que “A vida social nasce a partir de um contrato entre os diversos indivíduos a fim de tornar possível a convivência social. Por isso, os indivíduos se reúnem em uma sociedade política (Estado) apenas com a finalidade de sobrevivência”(BOBBIO, 1998, p.659).
A forte valorização do individualismo é o que destacamos no caso de Hobbes, entretanto, para este, o direito positivo deve preponderar sobre o direito natural. De acordo com Bobbio, os defensores de um direito natural durante a modernidade passaram a perceber a relação entre o Estado, as leis e os indivíduos por uma perspectiva diferente do que se via até então.
O próprio Estado é considerado pelo Jusnaturalismo moderno mais como obra voluntária dos indivíduos do que como instituição necessária por natureza, que era o que ensinava a maior parte das doutrinas clássicas e medievais. Para os jusnaturalistas modernos, os indivíduos abandonam o Estado de natureza (diversamente entendido, mas sempre carente de organização política) e fazem surgir o Estado politicamente organizado e dotado de autoridade, a fim de que sejam melhor tutelados e garantidos os seus direitos naturais; o Estado é legítimo na medida em que e enquanto cumpre esta função essencial, que lhe foi delegada mediante pacto estipulado entre os cidadãos e o soberano (contrato social). (BOBBIO, 1998, p.659. grifo nosso)
De acordo com Silva, para o caso específico de Thomas Hobbes:
[...] os indivíduos renunciam aos direitos naturais (exceto à vida) quando entram no Estado Civil. A partir do consenso eles transferem os direitos naturais ao monarca como detentor de um poder absoluto a fim de garantir uma vida social que lhes traga segurança. Ele defende que o soberano não tem nenhum dever em relação aos súditos e estes não têm nenhum direito à resistência contra o poder soberano. O critério de justiça ou injustiça nasce da vontade do rei expressa nas leis civis, mesmo que não haja uma correspondência entre a lei civil e a lei natural. Enquanto o jusnaturalismo tradicional defendia a supremacia da lei natural em relação à lei civil, quando esta última estava em discordância com aquela primeira; o jusnaturalismo moderno, ao contrário, defende a superioridade do direito positivo sobre o direito natural. (SILVA, 2005, p. 408)
O pensamento de Thomas Hobbes era inovador e demonstrava uma grande valorização do indivíduo em detrimento, inclusive, da visão da filosofia cristã, principalmente em relação ao pensamento medieval de Agostinho e Aquino, posto que em sua concepção de um “estado de natureza”, no qual o homem se encontra em uma espécie de estado de “selvageria”, se evoca uma natureza humana estranha a moralidade cristã e aos princípios racionais, então vistos como de origem da “imposição divina”, racional, e presente em todos e imposta ao homem pela “mente de Deus”. Esta nova perspectiva pode ser compreendida a partir do próprio pacto social estabelecido na Europa durante os primeiros séculos da era moderna com o advento da acumulação de capital, do mercantilismo e do capitalismo nascente.
Thomas Hobbes é um pensador do poder. Ele é antes de tudo um individualista, um contratualista, defensor do absolutismo, muito mais que um cristão convicto da natureza divina dos homens enquanto frutos incontestáveis da criação divina, e por ela irradiados da suprema inteligência. Definitivamente um homem moderno. Numa concepção moderna dos direitos naturais, Silva destaca que:
O verdadeiro meio de conhecimento do direito natural é a experiência sensível vinculada à razão instrumental. A dedução de princípios das normas do direito natural provém da própria natureza humana. Hobbes, como representante do jusnaturalismo moderno, busca delinear uma concepção de natureza humana que seja comum a qualquer homem e em qualquer circunstância, segundo a qual o homem vive em uma luta recíproca pelo poder em função de sua própria conservação. (SILVA, 2005, p. 407)
Em relação a valorização do individualismo por Hobbes, Silva também destaca que:
O direito natural [moderno] não é derivado da ordem da criação permeada pela razão divina, uma vez que a doutrina jusnaturalista moderna parte do instinto de conservação e o exalta como fundamento do direito natural inerente à natureza racional e instintiva do homem. Sendo assim, a sociabilidade humana não é uma tendência espontânea posta por Deus nos homens, mas a vida em sociedade está vinculada ao instinto individualista de conservação. (SILVA, 2005, p. 407)
O portador dessa racionalidade nesta concepção moderna é o sujeito, que pode individualmente “construir conhecimentos verdadeiros utilizando as faculdades da razão, que possui enquanto ser humano” (BANNEL, 2010, p.85). Concepção que na filosofia de Kant vai afirmar que o homem é “um fim em si mesmo”, base argumentativa fundamental para justificativa dos direitos humanos nas declarações do século XVIII, e que forja o conceito de dignidade humana, pois que baseia seu valor nele próprio, como um fim. A racionalidade neste caso é uma característica intrínseca ao homem e que o torna senhor de si, detentor de direitos obviamente perceptíveis (também pela racionalidade) dentro de uma concepção de moral universal e imutável, como o direito de não sofrer violências, por exemplo. Como defendia Kant:
Admitindo […] que haja alguma coisa cuja existência em si mesma tenha um valor absoluto e que, como fim em si mesmo, possa ser a base de leis determinadas, nessa coisa e só nela é que estará a base de um possível imperativo categórico, quer dizer, de uma lei prática. (KANT, 1986, p. 67)
O direito natural pode ser visto também como o direito que faz o contraponto ao direito positivo, que em certo sentido pode ser visto como a possibilidade de resistência à própria opressão exercida, em maior e menor escala pelo Estado e pelos outros indivíduos. Para tanto, este direito fundamenta-se numa moral maior, universal, racionalmente identificável. Segundo Bannel, dentro da dimensão prática:
Na esfera da realidade, a concepção metafísica de uma ordem cósmica, harmoniosa e imutável, foi substituída pela concepção de um mundo natural ordenado por leis naturais e um mundo social concebido numa maneira similar. Por isso, além das ciências naturais modernas, que tentaram descobrir as leis da natureza, surgiu no início da modernidade a ideia de uma lei natural que rege, ou deveria reger, o convívio de sujeitos em sociedade. Aqui entra a questão da racionalidade, porque se há leis naturais desse tipo, então é a razão humana que as descobre. (BANNELL, 2010, in Ferreira, Zenaide e Pequeno, 2010, p.84. grifo nosso).
Neste sentido, segundo Paulo César Nodari e Luiz Síveres, em um primeiro momento (momento este, do estabelecimento dos direitos individuais, no século XVIII), a evolução dos direitos naturais afirmam-se como “os direitos de liberdade, ou seja, todos aqueles direitos que tendem a limitar o poder do Estado e a reservar para o indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação ao Estado.” (NODARI e SÍVERES, 2015)
O direito positivo, entretanto, é o direito que parte de uma ordenação social, que está diretamente vinculada à ordenação jurídica do Estado. Esta concepção passou a ser mais amplamente defendida a partir, principalmente, dos contratualistas modernos.
E os direitos humanos, onde se encontram? Como veremos adiante, no cruzamento entre essas concepções.
A declaração de 1789
A declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789
Levando em conta todas estas concepções dos direitos naturais, do direito positivo e de sua defesa pelos individualistas, podemos agora dar início a análise da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
O fio condutor que liga de forma mais direta a história dos direitos humanos e os direitos naturais, foi magistralmente pesquisado e elaborado por Lynn Hunt, em sua obra “A invenção dos Direitos Humanos - Uma História” (2009). Utilizaremos aqui partes deste estudo como fundamentação de questões sociais, políticas e evolução dos próprios argumentos que possibilitaram a Declaração da Virgínia de 1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
Hunt destaca que “havia duas versões da linguagem dos direitos no século xviii: uma versão particularista (direitos específicos de um povo ou tradição nacional) e uma universalista (os direitos do homem em geral)”. (HUNT, 2009, p. ). As diferentes visões e objetivos dos franceses e dos americanos ao reivindicar os direitos dos seus cidadãos, trazem uma primeira problemática diante da iminência das declarações. Os americanos, quando do início do processo que acabaria por culminar na independência dos EUA mas que antes se manifestou através do primeiro congresso da Filadélfia, buscavam a igualdade enquanto súditos britânicos, buscavam o respeito enquanto súditos do rei da mesma maneira que assim o eram os britânicos, queriam igualdade de direitos, e, para tanto, reivindicavam direitos individuais. No caso dos franceses, no calor dos conflitos que seriam coroados pela declaração de 1776 e a de 1789, reivindicaram para si os direitos universais, reivindicavam desde o início os direitos que se fundamentam na natureza humana. De que forma se deu então, em ambas as declarações, a escolha pelo viés universalista, que claramente tornou-se a escolha de ambos os continentes? Hunt, neste sentido ressalta que:
Durante a crise da Lei do Selo em meados da década de 1760, por exemplo, os panfletários americanos enfatizavam os seus direitos como colonos dentro do Império Britânico, enquanto a Declaração da Independência de 1776 invocava claramente os direitos universais de todos os homens. Depois os americanos montaram a sua própria tradição particularista com a Constituição de 1787 e a Bill of Rights de 1791. Em contraste, os franceses adotaram quase imediatamente a versão universalista, em parte porque ela solapava as reivindicações particularistas e históricas da monarquia. (HUNT, 2009, p. )
Apenas algumas décadas mais à frente e veríamos ganhar força entre os americanos o viés universalista em relação a forma como pensavam as reivindicações desses direitos. Como destaca Hunt:
Da década de 1760 em diante, entretanto, o fio universalista dos direitos começou a se entrelaçar com o particularista nas colônias britânicas da América do Norte. Em The Rights of the British Colonies Asserted and Proved (1764), por exemplo, o advogado James Otis, de Boston, confirmava tanto os direitos naturais dos colonos (“A natureza colocou todos eles num estado de igualdade e liberdade perfeita”) como seus direitos civis e políticos como cidadãos britânicos: “Todo súdito britânico nascido no continente da América, ou em qualquer outro dos domínios britânicos, está autorizado pela lei de Deus e da natureza, pela lei comum e pela lei do Parlamento [...] a usufruir de todos os direitos naturais, essenciais, inerentes e inseparáveis de nossos colegas súditos na Grã-Bretanha”. Ainda assim, dos “direitos de nossos colegas súditos” em 1764 até os “direitos inalienáveis” de “todos os homens” de Jefferson em 1776 foi mister dar outro passo gigantesco. (HUNT, 2009, p. )
Observando esta passagem, percebemos que este passo gigantesco ganhou seu espaço em (relativo) pequeno espaço de tempo, na mesma medida que as manifestações dos colonos americanos deixava de ter um perfil de reivindicação de seus direitos enquanto súditos, e passava a alegar a necessidade de autonomia política e econômica em relação a sua metrópole.
O fio universalista dos direitos engrossou na década de 1760 e especialmente na de 1770, quando se alargou a brecha entre as colônias norte-americanas e a Grã-Bretanha. Se os colonos queriam estabelecer um novo país separado, não podiam contar meramente com os direitos dos ingleses nascidos livres. Caso contrário, estavam querendo uma reforma, e não a independência. (HUNT, 2009, p. )
Uma outra questão ainda importante de levantarmos aqui é como pôde essa escolha pelo viés universalista, na história posterior dos EUA, conviver com a manutenção da escravização de pessoas, do tráfico das gentes e do emprego desumano de seus corpos e suas mentes em trabalhos extenuantes e condições humilhantes e degradantes de existência. O fato, um dos mais simbólicos em relação ao perfil da nova nação que surgia, se justifica pelo perfil econômico e do interesse das elites que estiveram a frente do processo de independência, e que já lideravam antes as colônias, portadores de um pensamento, no sentido de defesa de seus privilégios, muito similar àqueles das elites europeias do antigo regime. De acordo com Hunt a importância dada à propriedade privada no pensamento de Locke, foi definitiva:
Os ingleses tinham produzido dois pensadores universalistas capitais no século xvii: Thomas Hobbes e John Locke. As suas obras eram bem conhecidas nas colônias britânicas da América do Norte, e Locke em particular ajudou a formar o pensamento político americano, talvez ainda mais do que influenciou as visões inglesas. Hobbes teve menos impacto do que Locke, porque ele acreditava que os direitos naturais tinham de se render a uma autoridade absoluta a fim de impedir a “guerra de todos contra todos” que do contrário sucederia. Enquanto Grotius havia igualado os direitos naturais à vida, ao corpo, à liberdade e à honra (uma lista que parecia questionar, em particular, a escravidão), Locke definia os direitos naturais como “Vida, Liberdade e Propriedade”. Como enfatizava a posse — Propriedade —, Locke não questionava a escravidão. Justificava a escravidão de cativos capturados numa guerra justa. Locke até propunha uma legislação para assegurar que “todo homem livre de Carolina tenha poder e autoridade absolutos sobre seus escravos negros”. (HUNT, 2009, p. )
Locke colocou a propriedade privada, no pensamento ocidental, no mesmo patamar dos direitos naturais.
Os direitos do homem mudaram e muito em suas concepções até a chegada das suas formas mais contemporâneas, em cada contexto, estes direitos foram reivindicados dentro de interesses e contornos específicos, como já destacamos.
Mas, podemos estabelecer uma ligação direta entre as teorias jusnaturalistas e a proclamação dos direitos dos homens? Vale destacar, em primeiro lugar, que nas declarações de Virgínia e da França, em nenhum momento foi utilizada a expressão ``direitos humanos``. No preâmbulo da primeira, consta apenas a expressão direitos inatos, enquanto que na segunda, é empregada a expressão direitos naturais. Segundo Hunt (2009), esta ligação reside na história da França e na história dos EUA, e principalmente na ligação entre as duas nações, no contexto das lutas travadas nos dois continentes pela independência e pela liberdade. Um dos pensadores, presentes no formato de citações nos discursos políticos durante o processo de independências dos EUA, foi Jean-Jacques Burlamaqui, um estudioso dos direitos naturais e conhecido por haver levado a frente os argumentos de Grotius, em defesa de direitos naturais enquanto frutos da razão humana. Segundo Hunt os teóricos suíços do século XVIII, teorizaram a respeito dessas ideias.
O mais influente deles, Jean-Jacques Burlamaqui, ensinava direito em Genebra. Ele sintetizou os vários escritos sobre direito natural do século xvii em Principes du droit naturel (1747). Como seus predecessores, Burlamaqui forneceu pouco conteúdo político ou legal específico para a noção dos direitos naturais universais: o seu principal objetivo era provar que eles existiam e derivavam da razão e da natureza humana. (HUNT, 2009, p. )
Hunt segue defendendo que a linha de pensamento universalista, passou a ser um melhor fundamento lógico aos interesses americanos, “e assim os discursos das eleições americanas nas décadas de 1760 e 1770 começaram a citar diretamente Burlamaqui em defesa dos ‘direitos da humanidade’”(HUNT, 2009). Hunt também destaca que:
Grotius, Pufendorf e especialmente Locke apareciam entre os autores mais frequentemente citados nos escritos políticos, e Burlamaqui podia ser encontrado em números cada vez maiores de bibliotecas públicas e particulares. Quando a autoridade britânica começou a entrar em colapso, em 1774, os colonos passaram a se considerar em algo semelhante ao estado de natureza a respeito do qual tinham lido. Burlamaqui tinha afirmado: “A ideia do Direito, e ainda mais a da lei natural, estão manifestamente relacionadas com a natureza do homem. É portanto dessa própria natureza do homem, da sua constituição e da sua condição que devemos deduzir os princípios desta ciência”. Burlamaqui falava apenas da natureza do homem em geral, não sobre a condição dos colonos americanos ou a constituição da Grã-Bretanha, mas sobre a constituição e a condição da humanidade universal. Esse pensamento universalista tornava os colonos capazes de imaginar um rompimento com a tradição e a soberania britânica. (HUNT, 2009)
A partir deste ponto, como salienta Hunt, “o discurso dos direitos estava ganhando impulso desde a década de 1760. Os “direitos naturais”, então suplementados pelos “direitos do gênero humano”, “direitos da humanidade” e “direitos do homem”, tornaram-se expressões corriqueiras. (2009, p. ) As lutas e disputas de narrativas em relação aos direitos dos homens travadas nas assembleias, nos debates políticos e nas batalhas no contexto da independência americana foram decisivas segundo Hunt, e a concepção universalista e racionalista dos direitos dos homens “cruzou de volta o Atlântico para a Grã-Bretanha, a República Holandesa e a França”(HUNT, 2009, p.), influenciando os debates políticos no contexto da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Hunt destaca que a conjuntura específica da escalada do separatismo americano em relação ao império britânico, cruzou novamente o oceano Atlântico, de volta a França:
Com o seu potencial político imensamente intensificado pelos conflitos americanos das décadas de 1760 e 1770, o discurso dos direitos universais cruzou de volta o Atlântico para a Grã-Bretanha, a República Holandesa e a França. Em 1768, por exemplo, o economista francês de mente reformista Pierre-Samuel du Pont de Nemours ofereceu a sua própria definição dos “direitos de cada homem”. A sua lista incluía a liberdade de escolher uma ocupação, o livre comércio, a educação pública e a tributação proporcional. Em 1776, Du Pont se apresentou como voluntário para ir às colônias americanas e relatar os acontecimentos ao governo francês (uma oferta que não foi aproveitada). Mais tarde Du Pont se tornou amigo íntimo de Jefferson, e em 1789 foi eleito deputado pelo Terceiro Estado. (HUNT, 2009, p. )
Há uma vinculação entre os dois direitos, considerando que a aceitação da existência de um direito dos homens, supra-nacionais e supra-jurídicos (pois não são leis mas são mais poderosos que estas, e não obedecem a territórios estabelecidos, pois são “dos homens”) passa necessariamente pela positivação dos direitos naturais, incluindo na lógica burocrática e legal da constituição dos próprios Estados, um esforço por limitar o poder deste mesmo Estado e de seus possíveis opressores, principalmente em sentido político, de imposições por meio da violência de várias naturezas, de posturas, obrigações e condições de vida indignas.
A própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão utiliza a expressão direitos naturais, e não encontramos neste documento a expressão direitos humanos. Além do que nos dois documentos são caracterizados o que são, especificamente estes direitos, o que deixa claro que entre as declarações do século XVIII e a declaração de 1948, muitas mudanças serão incorporadas a estas ideias. No preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, podemos ler:
Os representantes do povo francês, reunidos em Assembléia Nacional, tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre permanentemente seus direitos e seus deveres [...] (Declaração dos direitos do homem e do cidadão, 1789, grifo nosso).
No Artigo 2° do mesmo documento, são citados quais são estes direitos.
Art. 2º. A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade a segurança e a resistência à opressão. (Declaração dos direitos do homem e do cidadão, 1789, grifo nosso)
E no artigo II da declaração de Virgínia também consta que:
Art. II. Que todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, e têm certos direitos inatos, dos quais, quando entram em estado de sociedade, não podem por qualquer acordo privar ou despojar seus pósteros e que são: o gozo da vida e da liberdade com os meios de adquirir e de possuir a propriedade e de buscar e obter felicidade e segurança. (Declaração dos direitos do bom povo da Virgínia, 1776).
O individualismo é perceptível nas duas declarações e é fruto mesmo da sociedade moderna europeia que percebe os indivíduos como seus portadores, portanto, existem “os direitos”, e não mais sua emanação de uma única fonte legítima, seja ela o deus cristão ou o rei. Seguindo os estudos de Tosi, destacamos uma passagem de Villey, que faz uma importante observação contextualizadora dos direitos humanos enquanto uma possibilidade apenas diante da modernidade e que contribui para percebermos que, ao contrário de de buscarmos aqui estabelecer uma linha contínua e evolutiva desses direitos, percebemos muito mais rupturas, apropriações e novas contextualizações e conceitualizações em busca do embasamento de demandas específicas de cada um destes diferentes tempos:
[...] os direitos humanos são tipicamente modernos e ocidentais, isto é, nascem num determinado período histórico e numa determinada civilização: na Europa a partir dos séculos XVI/XVII, porque é somente neste contexto histórico que os conceitos adquirem o seu significado próprio e distinto daquele antigo. Isso não significa afirmar que “antes” dos direitos humanos modernos só existia o arbítrio, ou seja, havia uma ordem jurídica complexa que regulamentava as relações sociais: havia “direito” (jus) embora não houvesse “direitos” (jura) como o entenderão os modernos e contemporâneos (Villey, 2007, apud Tosi, 2010, p. 64. Grifos do autor)
Em outro sentido há uma relação importante e que se encontra na origem dos direitos humanos: “todo direito civil tem por base um direito natural”. (TOSI, 2010). Porém, o que se demonstra na prática política e nas questões sociais mesmo após o uso amplo destes argumentos como fundamento para o próprio surgimento das novas nações, quando não de novos modelos sociais, ainda assim gerou em uma escala quase tão grande quanto antes, sociedades amplamente desiguais e baseadas em princípios de privilégios, quando não aristocráticas e estamentais amenizadas por falações e discursos jurídicos vazios. Há, nos direitos estabelecidos nos EUA e na frança após o século XVIII, um vácuo e um esvaziamento que permite levá-lo a justificar ideologias e interesses diversos, contrário, muitas vezes às próprias origens dessas reivindicações. O povo, o cidadão, as gentes, foram usadas em muitos casos, como bodes expiatórios para se justificar interesses de seus novos opressores, como podemos observar, por exemplo, no fato de que alguns dos envolvidos na produção e na argumentação desses movimentos e direitos eram senhores, donos de escravizados, vendedores de pessoas.
É importante salientarmos neste ponto que a relação de derivação, ou continuidade dos direitos dos homens (ainda não tratados por Direitos Humanos) em decorrência dos direitos naturais se restringe à primeira geração destes direitos, no século XVIII, principalmente no contexto da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. E não foi sem contradições e até mesmo sem reações que foram estabelecidas.
Um contra-senso em relação ao nascimento dos direitos humanos reside na escolha pela fundamentação encontrada em John Locke, que está diretamente ligada aos interesses pela manutenção da propriedade privada e, dentro deste princípio, o direito da posse de pessoas como mercadorias, que se fundamentava em muito pela cor da pele, estigmatizando e excluindo uma parte dessa humanidade (menos que humana, portanto) de seus direitos. Este fato nos mostra desde antes mesmo da promulgação desses direitos propriamente ditos, as formas contraditórias pelas quais poderiam ser abordados a partir daqui. Podemos perceber com isso o quanto estas ideias da defesa dos direitos dos homens, dos direitos (universais) são datadas e marcadas pelo pensamento ocidental e partem também de interesses, o que corrobora para que possamos desconstruir a “aura mágica” que defende uma espécie de aspecto “sagrado”, apriorístico e imutável destes direitos, que pode ser em parte explicado por sua herança em tantas vertentes argumentativas do jusnaturalismo aqui apresentadas mesclados com os interesses específicos, de grupos específicos e produtos de uma cultura específica. E assim pode-se pôr em xeque também a argumentação de que os direitos do homem e posteriormente (e ainda com maior ênfase) os direitos humanos, tenham surgido como garantidores da dignidade humana, quando muitas vezes na história desde 1776, e até os dias de hoje, foram colocados a serviço dos mais diversos interesses, e a dificuldade de caracterizá-los e defini-los como algo além de “ideias metafísicas”.
Em relação à mudança dos termos utilizados ao se referir a estes direitos, ou seja, quando passa-se a utilizar a expressão os “direitos dos homens” ou “direitos humanos” em substituição aos direitos naturais, temos algumas pistas. Durante o século XVIII, o termo direito natural era mais amplamente aceito, e poucas vezes esteve presente nas declarações, assembleias e textos da época. De acordo com Hunt, isso pode estar relacionado ao fato de que:
A palavra inglesa “declaration” vem da francesa déclaration. Em francês, a palavra se referia originalmente a um catálogo de terras a serem dadas em troca do juramento de vassalagem a um senhor feudal. Ao longo do século xvii, passou cada vez mais a se referir às afirmações públicas do rei. Em outras palavras, o ato de declarar estava ligado à soberania. Quando a autoridade se deslocou dos senhores feudais para o rei francês, o poder de fazer declarações também mudou de mãos. Na Inglaterra, o inverso também é válido: quando os súditos queriam de seus reis a reafirmação de seus direitos, eles redigiam as suas próprias declarações. Assim, a Magna Carta (“Great Charter”) de 1215 formalizou os direitos dos barões ingleses em relação ao rei inglês; a Petição de Direitos de 1628 confirmou os “diversos Direitos e Liberdades dos Súditos”; e a Bill of Rights inglesa de 1689 validou “os verdadeiros, antigos e indubitáveis direitos e liberdades do povo deste reino”. (HUNT, 2009, p. )
Ainda na linha das reflexões de Hunt, percebemos que até mesmo o contexto semântico dos termos utilizados eram importantes no embasamento e na construção das narrativas em defesa das demandas daquele tempo, e daquele contexto social.
Em 1776 e 1789, as palavras “carta”, “petição” e “bill” pareciam inadequadas para a tarefa de garantir os direitos (o mesmo seria verdade em 1948). “Petição” e “bill” implicavam um pedido ou apelo a um poder superior (um bill era originalmente “uma petição ao soberano”), e “carta” significava frequentemente um antigo documento ou escritura. “Declaração” tinha um ar menos mofado e submisso. Além disso, ao contrário de “petição”, “bill” ou até “carta”, “declaração” podia significar a intenção de se apoderar da soberania. (HUNT, 2009, p. )
A palavra “declaração”, semanticamente, entregava a soberania ao povo. Mas é, sem dúvida, e apesar de todos os percalços, a partir de sua declaração que o respeito à dignidade humana passa a ser considerada, ao menos em tese - e as mulheres, os povos originários, os negros, as crianças, os deficientes? Apenas em uma segunda fase desses direitos, por isso acrescentamos “em tese”), como a origem de todo o direito e das leis. A positivação destes direitos na forma de uma declaração, de forma legitimamente reconhecida pelas instituições do Estado francês e norte-americano, colocava esses direitos em um novo patamar de legitimidade.
Assim como consta na própria constituição de 1789:
[...] a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser a qualquer momento comparados com a finalidade de toda a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral. (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789).
As leis deveriam servir de forma igual a todos e passavam a ser vistas como emanadas pela vontade popular, a serviço da dignidade de todos. Como podemos ler no artigo 3° da Declaração de Virgínia:
Que o governo é instituído, ou deveria sê-lo, para proveito comum, proteção e segurança do povo, nação ou comunidade; que de todas as formas e modos de governo esta é a melhor, a mais capaz de produzir maior felicidade e segurança, e a que está mais eficazmente assegurada contra o perigo de um mau governo; e que se um governo se mostra inadequado ou é contrário a tais princípios, a maioria da comunidade tem o direito indiscutível, inalienável e irrevogável de reformá-lo, alterá-lo ou aboli-lo da maneira considerada mais condizente com o bem público. (Declaração de direitos do bom povo de Virgínia - 1776)
Houveram entretanto fortes vozes de discordantes ao estabelecimento desses direitos e uma de suas principais reivindicações era a tradição. É amplamente conhecido, por exemplo, o posicionamento do historiador irlandês Edmund Burke, em relação ao assunto. Sua argumentação aborda esses direitos estabelecidos pela declaração exatamente pela lógica contrária ao que se esperava. Enquanto a positivação desses direitos passava a dar uma materialidade a estes direitos no âmbito jurídico, de proteção legal, Burke criticava sua fundamentação, chamando-a de ilegítima, distante da realidade, metafísica.
Esses direitos metafísicos, ao penetrarem na vida prática como raios de luz atravessando um meio denso, são desviados, pelas leis da natureza, de sua linha reta. Sem dúvida, na imensa e complicada massa de paixões humanas, os direitos primitivos do homem experimentam tal variedade de refrações, que se torna absurdo discuti-los como se continuassem na sua direção original. A natureza do homem é complicada; os objetivos da sociedade são da maior complexidade possível; logo quaisquer disposição e direção simples de poder não podem adequar-se nem à natureza do homem, nem à qualidade dos negócios que trata. Quando percebo a simplicidade das invenções que criam, para o orgulho de seus idealizadores, novas constituições, não consigo decidir-me quanto a considerar seus autores grosseiramente ignorantes do negócio ou totalmente negligentes em seu dever [...]. (BURKE, 1982, p.91, apud Nascimento, 2010 in Ferreira, Zenaide e Pequeno, 2010, p. 59)
E segue em seus escritos tecendo pesadas críticas à fundamentação e ao fato de estarem estes distantes da experiência adquirida pela trajetória histórica das tradições políticas europeias, que para estes fundamentam-se em de forma muito prática.
Os direitos que esses teóricos da Constituição pretendem obter são todos absolutos: em que pese a sua verdade metafísica, são moral e politicamente falsos. Os direitos do homem encontram-se numa espécie de meio-caminho, impossível de ser definido, mas que se pode, contudo, discernir. Os direitos dos homens nos diferentes governos compreendem suas vantagens, as quais são contrabalançadas pelo equilíbrio entre as diversas formas de bem , algumas vezes entre o bem e o mal; e, vezes ainda, entre o mal e o mal. A razão política é calculadora: ela soma, subtrai, multiplica, divide as verdadeiras qualidades morais moralmente e não metafísica ou matematicamente. (BURKE, 1982, p.91, apud Nascimento, 2010 in Ferreira, Zenaide e Pequeno, 2010, p. 59)
Lynn Hunt destaca a voz de Jeremy Bentham também como um crítico “de peso” aos direitos naturais então proclamados.
O princípio da utilidade (a maior felicidade do maior número de pessoas, uma ideia que ele tomou emprestada de Beccaria), ele argumentaria mais tarde, servia como a melhor medida do certo e do errado. Só cálculos baseados em fatos, em vez de julgamentos baseados na razão, podiam fornecer a base para a lei. Dada essa posição, a sua rejeição posterior da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é menos surpreendente. Num panfleto em que critica a Declaração francesa artigo por artigo, ele negou categoricamente a existência de direitos naturais. “Os direitos naturais são um mero absurdo: os direitos naturais e imprescritíveis, um absurdo retórico, um absurdo bombástico.” (HUNT, 2009, p. )
Hunt ainda destaca na sequência dessas citações, que apesar de todas essas críticas o discurso em defesa dos direitos naturais ganhava cada vez mais força. E essa força muitas vezes ganhava novo impulso e uma nova e poderosa significação através dos movimentos pela independência dos EUA e da ligação direta criada entre os intelectuais e políticos franceses e americanos. Ao mesmo tempo que os americanos adotam o universalismo, fruto da “metafísica” francesa, os franceses passam a ter na história dos movimentos americanos o respaldo, parte da base argumentativa para o enraizamento das declarações e da defesa dos direitos dos cidadãos.
O posicionamento e as reivindicações ocorridos nas colônias francesas no âmbito da declaração de 1789, foi bastante decisivo também para a propagação dessas ideias, que se alastraram pelo mundo por meio dos escritos e discursos que percorriam o mundo de colônia em colônia, desde antes da própria declaração. O processo de lutas pela independência na ilha de São Domingos, liderada por negros, antes escravizados, que agora reivindicavam sua igualdade como prevista na própria Constituição da França, que reivindicavam o fim da escravização de pessoas, bem sucedido em 1794. O fim da escravização nas colônias francesas foi aprovado, com apoio do novo regime francês, porém, fora tragicamente e contraditoriamente restabelecido por Napoleão Bonaparte no século XIX, exclusivamente no Haiti. A elite branca na América espanhola, também encontrou nesses argumentos republicanos e de reivindicações de direitos uma forte base para justificar e reivindicar sua soberania e seu domínio neste território. Esses direitos individuais, universais e inalienáveis, eram amplamente reivindicados e passaram a constar nas constituições de muitos desses novos Estados, mesmo que fossem, na prática, alienados e esquecidos, ignorados a muitos povos, nações, etnias e grupos. Os direitos dos homens, na maioria dos casos, chegaram na América em livros e discursos embaixo dos braços da elite branca latifundiária, aqueles antes nomeados criollos, e que, na forma como ensinamos aos nossos alunos, posteriormente se tornaram caudilhos. Quando esses direitos eram porventura evocados ou reivindicados pelos grupos subalternizados - e isso ocorreu também em grande proporção - tornava-se caso de polícia.
Antes de nos direcionarmos às análises da declaração de 1948, gostaria de finalizar esta parte de nossa pesquisa com um breve comentário destacando algumas questões importantes relacionadas ao contexto do século XIX, considerando os principais pontos de dificuldades e de avanços no sentido do estabelecimento dos Direitos Humanos.
Durante o contraditório século XIX, houveram inúmeros progressos e retrocessos, movimentos de fluxo e refluxo em relação ao estabelecimento dos direitos dos cidadão, tanto no continente europeu como no americano. As lutas pelo estabelecimento de ideias republicanas, de novas constituições e até mesmo de novos Estados, e do grande esforço reacionário por parte da nobreza (no contexto das revoluções marcadas pelos eventos de 1830 e 1848 na França), permitiram, em termos de realidade social, alguns avanços substanciais no sentido de generalização e de reconhecimento de direitos a alguns cidadãos de Estados europeus, mas também outros retrocessos. O imperialismo europeu, neste período, entra em uma nova fase em relação a exploração dos homens e mulheres já a séculos relegados à condição de meros objetos, ferramentas de trabalho. Criou-se neste contexto uma linha de argumentação pseudo científica para justificar a exploração e o assalto aos territórios asiáticos, africanos e americano. Os homens e mulheres não europeus, eram vistos como sub-raças, que recebiam dos europeus a graça, a oportunidade para o progresso. Os europeus estabelecidos na América desde séculos, os mesmos idealizadores da declaração de independência da Virgínia, evocavam o destino manifesto por Deus para explorar novos territórios, e tanto os ingleses, os americanos e os europeus, chamavam a isso (numa referência ao poema de Rudyard Kipling) “fardo do homem branco” que sofria ao cumprir sua pena de libertar e emancipar os “menos-que-humanos” pelo mundo afora. Em tempo de ciência, de racionalismo e de cientificismo, quando o discurso unicamente religioso e metafísico não poderia mais ser a única fonte de explicações para as atrocidades, foram articuladas novas teorias pseudo-científicas como o darwinismo-social, práticas eugenistas e as teorias racialistas. E estas teorias e visões obscurantistas, repercutiram por séculos, misturadas a burocracia do estado, como por exemplo no caso das colônias alemãs na Namíbia, no caso do congo Belga de Leopoldo II, e embasaram mais a frente o orgulho racial de partidos políticos totalitários numa das maiores catástrofes humanas ocorridas, já no século XX. Segundo Tosi, existem muitos limites àqueles direitos claramente perceptíveis no processo histórico.
É oportuno também lembrar que, apesar da afirmação de que "os homens nascem e são livres e iguais", uma grande parte da humanidade permanecia excluída dos direitos: a Declaração de Direitos do Estado da Virgínia não considerava os escravos como titulares de direitos iguais aos homens livres; a Declaração dos direitos do homem e do cidadão da Revolução Francesa não considerava as crianças e as mulheres como sujeitos de direitos iguais aos dos homens. Em geral, em todas estas sociedades, só podiam votar os homens adultos e ricos; as mulheres, os pobres e os analfabetos não podiam participar da vida política. (TOSI, 2011)
Vale ainda destacar a forte preponderância econômica e os interesses europeus. Pois uma vez declarados estes direitos não tinham validade em âmbito internacional, como, por exemplo, nos territórios colonizados, os direitos eram dos homens europeus, brancos. “Com efeito, neste período na Europa, ao mesmo tempo em que proclamavam-se os direitos universais do homem, tomava um novo impulso o grande movimento de colonização e de exploração dos povos extra-europeus”. (TOSI, 2011)
Ao mesmo tempo, o século XIX foi marcado por disputas narrativas, ideológicas e políticas que representaram o nascimento de ideias que elevariam a outro patamar a questão da evolução e da luta e reivindicação dos direitos. Em um segundo momento, e muito como reação às atrocidades daquele século, mais que exigir os direitos civis - jurídicos e políticos -, marca característica da primeira fase do estabelecimento dos direitos dos homens, durante o século XIX, assistimos ao surgimento de novas ideologias como o chamada socialismo utópico, o materialismo histórico, teorias políticas de Karl Marx, e novas exigências de direitos sociais e econômicos. De acordo com Tosi:
Os movimentos revolucionários de 1848 constituem um acontecimento chave na história dos direitos humanos, porque conseguem que, pela primeira vez, seja acolhido na Constituição Francesa, ainda que de forma incipiente e ambígua, o conceito de "direitos sociais". Estava assim aberto o longo e tortuoso caminho que levaria progressivamente à inclusão de uma série de direitos novos e estranhos à tradição liberal: à educação, ao trabalho, à segurança social, à saúde, etc. que modificam a relação do indivíduo com o Estado. O liberalismo olhava o Estado com intrínseca desconfiança: a questão central era a garantia das liberdades individuais contra a intervenção do Estado nos assuntos particulares. Agora tratava-se de obrigar o Estado a fornecer um certo número de serviços para diminuir as desigualdades econômicas e sociais e permitir a efetiva participação de todos os cidadãos a vida e ao "bem estar" social.(TOSI, 2011).
Ainda de acordo com Tosi, o socialismo, por sua vez, trouxe novas demandas, diversas das reivindicações individualistas que fundamentam estes direitos até então.
O socialismo, sobretudo a partir dos movimentos revolucionários de 1848 (ano em que foi publicado o Manifesto da Partido Comunista de Marx e Engels) reivindica uma série de direitos novos e diversos daqueles da tradição liberal. A Egalité da Revolução Francesa era somente (e parcialmente) a igualdade dos cidadãos frente à lei, mas o capitalismo estava criando grandes desigualdades econômicas e sociais e o Estado não intervinha para pôr remédio a esta situação. (TOSI, 2011).
As revoluções tecnológicas no contexto do século XIX, cobravam grandes custos em vidas humanas e desrespeito institucionalizado à dignidade. Porém, ao mesmo tempo prometiam a entrega do maior fruto (ou delírio) do liberalismo, a grande “consequência natural” de todo aquele “processo evolutivo”, marcado pelo século das luzes: o progresso.
A ordem do estabelecimento dos direitos (que de fato agreguem a totalidade das necessidades e da dignidade humana), é sempre inacabada, estabelecida no fluxo de um devir contínuo, das mudanças sociais, onde transcorre a vida, na “crista da onda” dos processos históricos e socioculturais, onde sempre houve e haverá pessoas e grupos de desprotegidos, excluídos, desrespeitados, esquecidos, caluniados, violentados e famintos. Nesse sentido os direitos humanos são uma eterna construção através de processos, ocorrendo neste fluxo, sempre inacabados, imprecisos e nunca completamente igualitários, seja pela redação da lei, seja pela prática social, o que os marca de fato é a própria dinâmica e disputa de poderes pela proteção, manutenção e atendimento aos direitos. Neste sentido, podemos dizer que a declaração de Virgínia de 1776 e a própria declaração de 1789, não foram ainda a própria proclamação dos direitos dos homens, por ser datada, fruto de um contexto específico que se localiza na Europa, para um grupo restrito de pessoas quando se considera a ideia de sua pretensa “universalidade”, foram apenas a base de apoio para o primeiro passo. Foi o que fundamentou diversas lutas outras, mesmo que derivadas de outros interesses, outras datas e outros contextos, até chegarmos nas declarações de 1948, que constituíram, estas sim, um primeiro pontapé na direção mesma de uma lei internacional, para todos os homens (mesmo que também ainda pretensa, mas naquele contexto, fruto de um amplo consenso, ao menos por parte dos Estados membros da ONU).
A declaração de 1948
As problemáticas que marcam o contexto do século XIX, seguem durante o século seguinte, e apenas após os eventos de grandes proporções que marcaram a primeira metade do século XX, é que teremos algum avanço mais significativo em relação aos direitos que passariam a ser chamada, a partir de 1948, de direitos humanos.
Passando ao contexto da declaração de 1948, e toda sua conjuntura histórica, podemos dizer que estas significaram um importante passo adiante no sentido da consolidação de uma agenda de direitos humanos, pois passa-se, a partir daí, a ocorrer um processo de positivação dos direitos humanos propriamente ditos, e em nível global de articulação. Passa a haver, segundo TOSI (2010, in Ferreira, Zenaide e Pequeno, 2010, p. 67) uma vinculação das relações internas e externas dos países. “A partir do processo de positivação, os direitos humanos deixam de ser orientações éticas ou programas de ação, e convertem-se em obrigações jurídicas que vinculam as relações internas e externas dos Estados”. (Tosi, 2010, in Ferreira, Zenaide e Pequeno, 2010, p.67)
E o autor segue destacando que o Estado assume a partir da positivação dos direitos humanos assim “um compromisso de ser o promotor do conjunto dos direitos fundamentais, não apenas do ponto de vista “negativo”, isto é, não interferindo na esfera das liberdades individuais dos cidadãos, mas também do ponto de vista “positivo”, implementando políticas que garantam a efetiva realização desses direitos para todos”. (Tosi, 2010, in Ferreira, Zenaide e Pequeno, 2010, p.67)
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi seguida da criação de uma série de declarações, cartas, convenções, protocolos, pactos e cartas, que estabeleceram, num espaço de décadas, o comprometimento internacional dos diversos Estados que se tornaram signatários desses direitos, comprometendo-se com o desenvolvimento econômico, social, com a igualdade e proteção dos direitos humanos. São exemplos disso, os tratados entitulados Preceitos da Carta das Nações Unidas - 1945, Convenção contra o Genocídio - 1949, Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados - 1951, Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados - 1966, Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos - 1966, Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - 1966, Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial - 1968, Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher - 1984, Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes 1984, Convenção sobre os Direitos da Criança - 1989. A título de conhecimento, o Brasil é signatário de todos eles.
Organizando-se em seu âmbito regional, esclarecendo e declarando sua concordância e comprometimento com os valores ocidentais expressos na Carta das Nações Unidas e na Declaração de 1948, foram criadas novas declarações, como, por exemplo, no caso americano, Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem - 1948, Convenção Americana sobre Direitos Humanos - 1969, Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura - 1985, Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher - 1994.
Além de trazer aos países uma responsabilidade fundamentada nos direitos naturais e no respeito à dignidade humana, a Declaração de 1948, passou a fundamentar o direito internacional, e também, segundo Bobbio (2004), da teoria à prática jurídica. “ A afirmação dos direitos do homem ganha concreticidade” (BOBBIO, 2004, p. 19). Porém, o autor ressalta também, nesta mesma passagem de “A Era dos Direitos”, que ao mesmo tempo em que estes direitos ganham concreticidade, perdem na mesma proporção em universalidade.
Bobbio defende que “A Declaração Universal dos Direitos do Homem pode ser acolhida como a maior prova histórica até hoje dada do consensus omnium gentium sobre um determinado sistema de valores”(2004, p.18) . Diferentemente do que percebemos na história precedente das relações internacionais, houve na fundação e declaração desses direitos, de fato, um amplo consenso internacional:
[...] foi aprovado por 48 Estados, em 10 de dezembro de 1948, na Assembléia Geral das Nações Unidas; e, a partir de então, foi acolhido como inspiração e orientação no processo de crescimento de toda a comunidade internacional no sentido de uma comunidade não só de Estados, mas de indivíduos livres e iguais. Não sei se se tem consciência de até que ponto a Declaração Universal representa um fato novo na história, na medida em que, pela primeira vez, um sistema de princípios fundamentais da conduta humana foi livre e expressamente aceito, através de seus respectivos governos, pela maioria dos homens que vive na Terra. (BOBBIO, 2004, p.18)
Para o estabelecimento das leis que contemplam os direitos naturais, estes ficam dependentes dos Estados e de suas leis oficiais. Tem validade apenas no âmbito dos Estados, fechados dentro de sistemas jurídicos, práticas de jurisprudência e nos diferentes níveis de desigualdade jurídica e de privilégios, em cada um dos países, por mais que tenham força vinculante, os direitos humanos patinam no mesmo lugar a décadas. De acordo com Bobbio:
A liberdade e a igualdade dos homens não são um dado de fato, mas um ideal a perseguir; não são uma existência, mas um valor; não são um ser, mas um dever ser. Enquanto teorias filosóficas, as primeiras afirmações dos direitos do homem são pura e simplesmente a expressão de um pensamento individual: são universais em relação ao conteúdo, na medida em que se dirigem a um homem racional fora do espaço e do tempo, mas são extremamente limitadas em relação à sua eficácia, na medida em que são (na melhor das hipóteses) propostas para um futuro legislador. (BOBBIO, 2004, p.18)
O direito natural, do qual mais a frente derivam os direitos humanos, passam a cumprir o papel de representar a defesa contra a opressão legitimada pela burocracia do Estado, assim como de conflitos entre grupos, e indivíduos que atravessam essa “fronteira moral”, identificável e “racionalmente reconhecida”.
Os direitos humanos passam a ser protegidos, para além da argumentação filosófica de juristas na “ágora”, por uma ordenação jurídica, apenas após a sua positivação pelo Estado. A presença desses direitos em um ordenamento jurídico foi essencial ao processo de reconhecimento de sua importância, pois assim passaram a ser reconhecidos, ordenados e processados dentro de uma linguagem oficialmente reconhecida pelo Estado.
Porém, para compreendermos de uma forma mais eficaz a promulgação dos direitos do homem necessitamos, obrigatoriamente, nos debruçar sobre alguns aspectos da história das atrocidades cometidas globalmente em relação aos eventos relacionados a ascensão do totalitarismo e a Segunda Guerra Mundial.
A derrota imposta à Alemanha no ano de 1945, mostrou-se nada além disso, uma derrota à Alemanha, e não uma derrota do nazi-fascismo e as ideologias genocidas. Porém, compreender as questões que levaram os Estados-membro e fundadores da ONU, em 1945, a declarar os direitos humanos, envolve uma análise não apenas de vitórias em conflitos bélicos, econômicas e políticas, mas envolve também a percepção de que os sentimentos de ódio, de expressões do racismo e de ideologias e até políticas de governo que defendem a superioridade e perseguição de minorias esteve e está presente de forma quase vulgar na maioria dos países, tanto do passado quanto de hoje.
Ainda antes das ações do nazismo, ao final da segunda guerra mundial, conhecidas como a solução final, mas já dentro de um contexto de perseguições abertas dos judeus na Alemanha, a recusa aos judeus era generalizada e transpunha continentes. A perseguição aos judeus e a outras minorias não foi obra apenas da Alemanha, mas um fenômeno ocidental.
Após a série de manobras parlamentares operadas por Hitler, objetivando sua ascensão ao poder, para que se tornasse o Füher, após a morte do Presidente Hindenburg, mesmo após a recuperação econômica da Alemanha e o início dos projetos de expansão da Alemanha nazista, da fabricação de armas, e os expurgos dos judeos, a impotente Liga das Nações, dominada pelos vencedores da Grande Guerra, mantinham o silêncio em relação aos judeus. Como salienta Viviane Forrester na obra “O Crime Ocidental” (2006).
Ainda que oficialmente anti-racistas, mesmo que moderados, os governos das grandes potências deram prova de uma fraqueza patológica, que beira o masoquismo, ante o ditador em ascensão, que ainda não se firmara. Da parte delas só houve renegações, complacências, apostasias. Siderados pelas encenações magistrais de Hitler, seus dirigentes pareciam fazer um círculo ao redor dele, na busca de suas graças, crédulos e trêmulos, ávidos por bajula-lo. Nenhum sinal de indignação, de protestos contra as pilhagens, humilhações, perseguições aos judeus, até mesmo publicamente afixadas, contra a sua prisão em massa[...]. (FORESTER, 2006, p.10)
Essas potências ocidentais, para além de sua impotência na política internacional, recusaram-se, a receber os judeus em seu território, mesmo diante dessas perseguições, fato transformado em zombaria aberta de Goering para o Conselho de Ministros nazista. “É curioso constatar que os países cuja opinião pública se ergue a favor dos judeus sempre se recusam a acolhê-los” (apud FORESTER, 2006). Ou ainda como ressaltaria Forester:
Sem dúvida, nos anos 30 e 40, as democracias ocidentais se opunham por princípio à ideologia da Alemanha nazista, mas isso não tinha importância de primeira ordem e não implicou nenhuma reação séria com relação às sevícias abertamente praticadas contra massas de indivíduos cujo extermínio, aliás, era evocado de maneira recorrente. Essas democracias assistiam, desde 1933, a um exercício de uma ferocidade oficial, a crueldades desenfreadas, notórias e sem comparação, apoiados em uma legislação abertamente promulgada para driblar a lei, servir tirania. (FORRESTER, 2006, p. 13)
A indiferença aos problemas judeus seguiu, mesmo após os conflitos militares iniciaram, e até a solução final, ou como dito por Forrester, “O planeta inteiro se esquivava deles, por toda parte reticente, o que em toda parte significava colaborar com o horror.” (2006, p.13)
Ademais, para além da impotência, surge a mais funesta face da cumplicidade do mundo “livre e democrático” ocidental em relação àquele contexto de perseguição. A burocracia dos países democráticos muitas vezes compactuam com os nazistas. A burocracia criava impedimentos legais para recepção dos judeus nestes países, que caso tivessem agido, teriam evitado a morte de milhões.
O postulante devia também provar que não ficaria “às expensas dos poderes públicos” americanos, mas lhe era proibido fazer qualquer referência à promessa de emprego; devia comprovar dispor de meios de subsistência suficientes, justo no momento em que estava destituído de todos os seus bens, sem contar que, embora autorizado a sair co o equivalente a 10 mil dólares em 1933, em outubro de 1934 autorizavam não mais que quatro dólares, ou seja, dez reichsmarks. (FORRESTER, 2006, p.27)
Havia uma maior preocupação em não parecer dar legitimidade ao argumento nazista, de Goering, de que os americanos e os franceses lutavam uma guerra em nome de seus judeus, do que um preocupação em salvar as suas vidas. E essas práticas seguiram, mesmo após as Leis de Nuremberg, em 1935.
Os pretextos oficiais dos aliados para rejeitar ou, pelo menos, tentar impedir o extermínio? O esforço de guerra que não se devia frear, os doze milhões desempregados nos Estados Unidos e, sobretudo, uma idea fixa, obsessiva: o medo, várias vezes mencionado, de corroborar o menos possível a propaganda de Hitler, dando essa guerra como incentivada pelos judeus e realizada em proveito dos judeus. Uma preocupação que faz pensar! (FORRESTER, 2006, p. 27)
Não devemos vacilar diante da simplificação de afirmar que foram apenas os judeus a serem exterminados nos campos de extermínio, e por culpa dos nazistas. Antes do extermínio dos judeus, foi o obsessivo extermínio do homem contra o homem, quando mais uma vez, sob o pretexto de falsos consensos, criavam seus bodes expiatórios, atribuindo culpa a quem não possuía merecimento. A acusação comum do nazismo contra os judeus era de que havia uma grande e poderosa organização, uma união internacional, uma nação paralela de judeus unidos pela religião, que ameaçava o sucesso europeu e ocidental já delineado na “era dos impérios”, e isso é uma grande mentira. A prova dessa mentira é a própria fraqueza e impotência dessas minorias diante das sucessivas violências que sofreram, e principalmente daqueles que foram deixados para trás. Essa impotência é evidente hoje e poderia ser claramente perceptível já naqueles tempos sombrios. Neste sentido, outra prova é, apesar dos inúmeros clamores por ajuda, a total inação das nações democráticas, que nunca foram em seu socorro, até que fosse tarde demais. Segundo Forrester, por exemplo:
Durante os três anos e meio em que os Estados Unidos estiveram presentes em guerra, de 1941 a 1945, foram recebidos apenas 21 mil refugiados, ou seja, 10% do parco contingente já autorizado. Procedimentos draconianos, incoerentes, relativos à obtenção de visto foram a primeira causa. Além de numerosos documentos, os perseguidos pelo Reich deviam conseguir a sua folha corrida, ou, pelo menos , um certificado de boa conduta fornecido pela polícia da qual fugiam. (FORRESTER, 2006, p. 27)
Antes disso, em 1933, o argumento para defender tal posição, causa hoje, e já deveria causar a época, espanto e tristeza.
Consideramos que o simples fato de um judeu ser expulso da Alemanha ou desejar fugir desse país para evitar a perseguição não é um motivo suficiente para dispensá-lo de apresentar tais documentos, se ele tem uma possibilidade razoável de solicitá-los às autoridades alemãs. (Estados Unidos da América. Declaração do conselheiro jurídico do departamento de Estado em 1933, em David Wyman in FORRESTER, 2006, p.27)
Em 1933, já diante de perseguições abertas aos judeus na Alemanha, e diante de dezenas de denúncias de violência e perseguição contra esses grupos, a opção era por abandoná-los à própria sorte, e bajular o líder em ascensão, que se tornava popular entre os líderes mundiais.
No que toca a França, Pierre Arnal, o encarregado de negócios em Berlim, por exemplo, prometia não aceitar senão “elementos cuidadosamente escolhidos” e proceder a “uma triagem séria com relação aos judeus de condição inferior”. Um outro exemplo? O cônsul geral da França em colônia, Jean Dobler, gabava-se, em abril de 1933, de ter “prescrito imediatamente que a partir daquele momento, todo postulante a visto deveria preencher um formulário, indicando sua confissão religiosa” e de suspender a "concessão de visto conforme o resultado de uma pesquisa a ser feita junto ao banco dado como referência pelo interessado. Eu poderia assim, certamente, descartar um número bastante grande de israelitas sem nenhum recurso ou que possuam insignificâncias” (L’accueil des réfugiés d’Europe centrale en France, 1933-1939, em cahiers de la Shoah, v.I, PAris: Liana Levi, 1994, apud FORRESTER, 2006, p. 28)
O que motivou o fato de estas pessoas terem sido deixadas para trás? Foi o fato de estarem unidas a esta “poderosa conspiração”? Creio que não seja o caso das famílias inteiras posteriormente postas nas câmaras de gás, avôs e avós, bebês, crianças e uma massa de corpos despidos de roupas e humanidade. Percebemos claramente quando olhamos em pormenores destes extermínios em massa nas câmaras de gás, nos fuzilamentos, nos enterrados vivos e nos milhares que pereceram devido a falência de seus corpos exaustos, que eram pessoas perdidas, sem saber para que caminho seguir, muitas vezes pobres, por outras destituídos arbitrariamente de seus recursos, aniquilados enquanto seres humanos, que falavam as mesmas línguas de seus algozes, que tinham os mesmos costumes, seus antigos colegas na escola, vizinhos em outros tempos, que tinham os mesmos gostos, que cultuavam o mesmo deus monoteísta do antigo testamento, e eram, em suma, os mesmos, parte exatamente da mesma humanidade que estes.
Na mesma linha de pensamento de Viviane Forrester:
É o próprio homem, na confusão de suas possibilidades, que está em questão, na sua fragilidade moral, ética, com suas obsessões funestas e sua capacidade de satisfazê-las, em sua ameaça a si mesmo, na sua liberdade de aniquilar a dos outros, de bajular a lei, apto a difundir, absorver e traduzir o desprezo ao respeito.
Quanto ao argumento, por vezes usado durante a guerra de que não haviam meios e transporte disponíveis, devido aos tempos de guerra, para se proceder este “resgate” dos judeus perseguidos, ressalta Forrester que:.
Quanto a falta de navios sempre apregoada, ela não existia: além dos meios marítimos possíveis, provenientes de diversos países neutros, como Portugal, podia-se utilizar uma quantidade suficiente de navios que, carregados de tropas e provisões com destino à Europa, retornavam vazios aos Estados Unidos - com os quais, aliás, foi possível transferir 400 mil prisioneiros de guerra alemães. (FORRESTER, 2006, p.30)
Outra importante questão levantada por Tosi e que necessariamente precisa ser abordada para a compreensão das contradições evidentes entre os direitos estabelecidos após as declarações e a garantia do cumprimento e prática desses direitos, reside na contradição entre as diversas concepções de Estado, de liberdade e de individualismo, originadas, uma pela tradição liberal, e outra pela tradição nascida no bojo do socialismo e em reação direta as desigualdades geradas no contexto daquela “nova ordem” liberal e burguesa estabelecida na história europeia. Ele ressalta que devemos sempre nos perguntar por que a sociedade moderna “que provocou um desenvolvimento histórico das forças produtivas inédito e que teve o mérito de colocar a centralidade dos direitos do homem, não foi capaz de cumprir as promessas solenemente feitas? (TOSI, 2011). E, mais adiante, no mesmo texto, propõe que:
Para encontrar uma resposta a este paradoxo, nos parece crucial enfrentar o problema da relação que se estabelece, na modernidade, entre os direitos civis e políticos (ou direitos de liberdade) e os direitos econômico-sociais (ou direitos créditos). A tese que queremos apresentar é que, apesar de uma aparente complementaridade, entre estas duas classes de direitos existe uma real contraditoriedade, dificilmente reconciliável. (TOSI, 2011)
A declaração de 1948, nasce num contexto de trauma humanitário e de disputas abertas, estabelecidas entre concepções liberais e progressistas, entre capitalismo e socialismo. A segunda guerra mundial tornou-se, por assim dizer, uma espécie de apoteose da contraposição dos posicionamentos de dois modelos político-econômicos e sociais que disputavam influência no mundo. O estabelecimento revolucionário dos estados socialistas, em meio às diversas medidas reacionárias e disputa pelo poder, quando devidamente tomado o controle e a constituição de um Estados socialista, como demonstra a história da URSS percebeu-se que
[...] na verdade, nunca foi fácil colocar em prática, ao mesmo tempo, os direitos de liberdade (civis e políticos) e os direitos de igualdade (econômicos sociais). Em particular, nos países de regime socialista, a garantia dos direitos econômico-sociais foi acompanhada por uma brutal restrição, ou até eliminação, dos direitos civis e políticos individuais. (TOSI, 2011)
Outro problema, por sua vez, reside no estabelecimento dos Estados liberais, das democracias ocidentais, fortemente influenciadas pelo individualismo dentro de uma prática política, que tendia a, antes de qualquer coisa, garantir a propriedade privada como o mais básico dos direitos naturais.
Enquanto os direitos de liberdade podem ser tutelados porque existe uma instância jurídica e política que pode ser acionada em seu favor, os segundos, ao contrário, carecem desta proteção e desta força coercitiva. Num país onde existe um mínimo de democracia política, um cidadão pode apelar ao Estado para que lhe seja reconhecida, por exemplo, a liberdade de opinião ou de religião ou de organização sindical e partidária. Porém um desempregado não pode se dirigir a nenhum órgão público para obter um emprego, mesmo se a constituição garanta este direito. O mesmo vale para a maioria dos outros direitos econômicos e sociais, inclusive em relação ao mais elementar de todos que é o direito à vida: na nossa sociedade, a diferença da sociedade escravista, somos livres de morrer de fome, porque ninguém é obrigado a nos manter em vida (TOSI, 2011)
A declaração de 1948, tentou conciliar essas diversas visões, como ainda destaca Tosi:
Os redatores tiveram a clara intenção de reunir, numa única formulação, as três palavras de ordem da Revolução Francesa de 1789: liberdade, igualdade e fraternidade. Desta maneira a Declaração Universal reafirma o conjunto de direitos das revoluções burguesas (direitos de liberdade, ou direitos civis e políticos) e os estende a uma série de sujeitos que anteriormente estavam excluídos (os escravos, as mulheres, os estrangeiros e, mais adiante, as crianças). Afirma também os direitos que vinham da tradição socialista (direitos de igualdade, ou direitos econômicos e sociais) e do cristianismo social (direitos de solidariedade). (TOSI, 2011)
Além dessas visões de mundo, as declarações e tratados da década de 1940, representaram um esforço para a reconciliação do homem com ele mesmo, foi uma resposta para os culpados pelo holocausto nazista, que era, no final das contas, todo o ocidente.
Os direitos humanos, neste contexto, seguiram apoiados em um de seus pilares essenciais: o universalismo. Porém, este universalismo deve ser interpretado mais como um “ou é para todos ou para ninguém”, como um embasamento para as diversas reivindicações de direitos, que um universalismo de fato, na prática política. Esta suposta universalidade pode ser questionada por, ao menos, duas perspectivas gerais, sendo a primeira os problemas de seus estabelecimento quando das constituições dos diferentes Estados e suas tradições, e por outro, pela perspectiva das diferentes concepções de homem que podemos verificar na diversidade. Tosi destaca que “‘atrás’ dessa lista crescente de direitos existem concepções diferentes de homem e de sociedade que não são facilmente compatíveis”. (TOSI, 2011)
O risco que corremos aqui, como esclarecido ainda pelo mesmo autor, está no fato de que
Os direitos humanos nascidos como construção ideológica para salvaguardar os privilégios da burguesia se tornaram uma ideologia que legitima o imperialismo ocidental, as intervenções militares “humanitárias”, a sacralização do mercado, a obsessão do politicamente correto. Um exemplo disso são posições dos conservadores que defendem a criminalização do adversário ou a afirmação de uma missão civilizadora que visa difundir os valores da democracia e dos direitos humanos ocidentais contra os “estados canalhas” ou “o eixo do mal” inclusive com a força das armas. (Tosi, 2010, in Ferreira, Zenaide e Pequeno, 2010, p. 62)
Gostaríamos de salientar neste ponto, em concordância com Bobbio (2004), que a declaração de 1948, não é o fim da história dos direitos humanos, mas apenas seu início, quando apenas a partir daqui se prega e exige seu cumprimento pela defesa de suas ideias em códigos de leis, quando esta passa a possuir uma “universalidade não mais abstrata”(BOBBIO, 2004, p.19), mas concreta em relação aos direitos universais positivos.
Bobbio defende que os direitos humanos de 1948, “são os direitos do homem histórico, tal como este se configurava na mente dos redatores da Declaração após a tragédia da Segunda Guerra Mundial, numa época que tivera início com a Revolução Francesa e desembocara na Revolução Soviética”. (BOBBIO, 2004, p. 20)
E justamente pelo fato de não ser essa uma declaração pronta e para todo o sempre, e passível defeitos e incompletudes, principalmente quando da sua interpretação no bojo do interesse de governos, países e até para a constituição dos diversos Estados aos quais esta lei passa a ser ideologicamente como uma linha mestra, muitos outros documentos foram gerados em complementaridade a declaração inicial e seguirão sendo criados mais a frente. Bobbio (2004, p. 21-22), destaca alguns deles no espaço de algumas páginas em sua obra. Tomamos a liberdade de recortá-los e citá-los aqui, assim como outros levantados para este fim (apenas os não citados anteriormente neste texto):
A Declaração dos Direito da Criança, de 20 de novembro de 1959; Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher, de 20 de dezembro de 1952; Declaração (seguida, dois anos depois, por uma Convenção) sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, de 20 de novembro de 1963; Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais, de 14 de dezembro de 1960; Convenções sobre o trabalho e a liberdade sindical, adotadas pela Organização Internacional do Trabalho em 1948; Convenção para a Prevenção e Repressão do Genocídio, aprovada pela Assembléia Geral em 9 de dezembro de 1958; Convenção Internacional sobre os direitos das Pessoas com Deficiência de 2006; Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio 1951
Direitos humanos no Brasil
Para iniciar estas análises torna-se importante dizer que a compreensão dos direitos humanos no Brasil, passam necessariamente por compreender o conceito de cidadania criado no ambiente político e social que tentou-se estabelecer neste país, principalmente após a promulgação da Constituição de 1988.
O conceito em questão, muito caro às ciências sociais, foi abordado por T. H. Marshall, quando tratou da expansão da cidadania na Inglaterra. O autor aborda o conceito pela divisão desses direitos em três diferentes classificações: direitos civis (direitos à vida, segurança, um julgamento imparcial, à liberdade de expressão e consciência, igualdade e propriedade), políticos (direitos de votar e ser votado, participar e organizar partidos políticos, etc.) e sociais (necessidades sociais, como educação, saúde, moradia, trabalho) (KOERNER, 2005, p.62). A evolução histórica da cidadania, ou seja, da conquista e positivação dos direitos no Brasil, ocorre de uma forma menos marcada que nas fases descritas por Marshall, não seguem a forma do caso da Inglaterra e de outros países da Europa. Koerner ressalta sobre Marshall, que:
O autor afirma que a cidadania expandiu-se na Inglaterra em três momentos sucessivos: no século XVII, os direitos civis foram reconhecidos a toda a população e incorporados nas relações sociais e dos cidadãos com o Estado; no século XIX, os direitos políticos foram gradualmente reconhecidos a toda a população adulta masculina (as mulheres teriam o direitos de voto a partir de 1928); no século XX (na primeira metade, os direitos sociais teriam sido reconhecidos e efetivados por meio de serviços públicos tornados disponíveis a toda a população do país. (KOERNER, 2005, p.62)
No caso brasileiro, não podemos seguir esta divisão clássica da conquista dos direitos civis, considerando nossas peculiaridades e especificidades históricas. Todas as constituições anteriores à constituição de 1988, garantiram uma série de direitos civis e políticos para uma parte da população brasileira, porém, em todas elas, da mesma forma uma grande parcela desta mesma população era destituída de direitos civis, políticos e sociais e também cerceada em âmbitos específicos de seus direitos.
A primeira constituição Brasileira, por exemplo, outorgada no ano de 1824, após graves embates entre o imperador D. Pedro I e a própria assembleia constituinte formada por ele, (“A constituição deve ser digna de meu poder”, proclamava o imperador às vésperas do fechamento da assembleia e da escolha pela “outorga”, em lugar de uma “promulgação”) não permitia a participação política aos escravos, estrangeiros, mulheres, analfabetos, além do estabelecimento do critério de comprovação de renda para garantia dos direitos políticos, fazendo com que um parte muito restrita da população gozasse de fato desses direitos. Ao mesmo tempo em que na Europa iam-se (em relação a data de nossa primeira constituição) quase 40 anos da eclosão da Revolução Francesa, quando já se organizavam partidos políticos que passavam a conquistar e ampliar direitos por um processo
[...] expansivo e cumulativos, em que partidos políticos e movimentos sociais reivindicavam o acesso a um conjunto de direitos, o qual expandiu as garantias e as oportunidades de participação e serviu de ponto de apoio para a luta por outros e mais amplos direitos (KOERNER, 2005, p. 62)
Além da própria Constituição de 1824, outras medidas foram tomadas para que apenas uma parcela da população pudesse garantir o acesso às maiores riquezas. Com o avanço das leis abolicionistas, houve a liberação de capital antes aplicado na compra de pessoas escravizadas, e, ao final do período imperial no Brasil, tratou-se de aprovar a Lei de Terras de 18 de setembro de 1850, que tratava de garantir (na prática) a propriedade apenas a uma elite aristocrática e latifundiária, excluindo camponeses, negros libertos, escravizados, pobres, imigrantes, e, para legitimar essa posição, defendiam como argumento principal a impotência dos pequenos proprietários para o combate aos povos originários. Após a promulgação da lei de terras, qualquer um que não tivesse um título oficial de terras emitido pelo Estado, era oficialmente tido como um posseiro, garantido a posse a terra que bem quisessem os sesmeiros dos tempos da colônia e seus descendentes.
A partir da república, as mudanças foram tímidas, com poucos avanços, considerando que a derrubada de uma monarquia e o início de uma república deveriam representar historicamente, (como Florestan Fernandes demonstra de maneira perspicaz na sua obra de 1974, exatamente numa comparação entre os casos brasileiros e europeu) a “revolução burguesa brasileira”. Nossos burgueses eram latifundiários escravistas, e nossa república estruturada em um sistema estamental, burocrata e autoritário.
A exclusão das mulheres da política é outro exemplo da exclusão de setores da sociedade dos direitos civis, que seguiu até 1932, sem falar na sua condição legal, que as considerava dependentes legais de seus maridos até 1962. Koerner salienta que as mulheres brasileiras precisaram reclamar nos tribunais alguns de seus direitos, como à educação superior e ao exercício de profissões “só tendo reconhecido a plena capacidade civil - isto é, a possibilidade de trabalhar, contratar e praticar outros atos da vida civil sem autorização de seus maridos - com o estatuto da mulher casada, de 1962”. (KOERNER, 2005, p. 62-63)
A participação política dos analfabetos (uma parcela bastante relevante e numerosa da sociedade brasileira) seguiu até a constituição de 1988.
Alguns avanços significativos em relação à conquista de direitos políticos e sociais ocorreram apenas após o ano de 1932 e a constituição de 1934. Muitos dos avanços que tivemos em relação à conquista de direitos estão em nossa história, contraditoriamente relacionados a períodos autoritários, como no caso das questões do trabalho.
As conquistas dos direitos estiveram, sempre, em primeiro lugar, relacionadas às lutas dos despossuídos contra a invisibilidade política e social perante o estado, porém as conquistas, dentro de um sistema republicano por muitas vezes autoritário e desenvolvimentista, foram atribuídas aos mecanismos estatais que “levavam o país ao progresso”. Como no caso da questão sindical e do trabalho, Koerner salienta que
[...] o reconhecimento dos direitos não foi apenas mediado pelas autoridades públicas, mas foi também incorporado pelo Estado, que em muitos aspectos se antecipou a àquelas lutas e deu a elas generalidade.[...] O reconhecimento estatal privilegiou um viés particular de incorporação da população: o modelo da “cidadania regulada”. A titularidade dos direitos individuais foi diretamente vinculada ao trabalho, ou seja a condição de trabalhador com carteira assinada dava aos indivíduos o acesso ao reconhecimento de seu estatuto mesmo de cidadão, além da garantia jurídica de suas relações de trabalho e os outros direitos sociais, como a aposentadoria, a assistência médica e outros serviços sociais. (KOERNER, 2005, p. 63).
O controle Estatal dos sindicatos, unido ao controle social e dos meios de comunicação através da censura, da perseguição política da oposição e da forte propaganda do Estado, promovida pela rádio, em grandes eventos e defendida por “especialistas e analistas” pagos pelo governo, permitia atribuir as conquistas ao Estado, e não as lutas sociais. Ainda de acordo com Koerner, “os trabalhadores tinham a sua representação coletiva em sindicatos organizados em moldes corporativos (participação não voluntária, unicidade de representação, regulação jurídica dos sindicatos pelo Estado)”(2005), o que levou a uma dissociação da luta dos trabalhadores por estes direitos de suas conquistas de fato, estas atribuídas ao Estado paternalista. Isso ocorreu principalmente durante o período do Estado Novo (1937-1945). E mesmo “a ampliação da participação política no período democrático posterior (1945-64) foi, em grande parte, dissociada da luta por estes direitos. (KOERNER, 2005, p. 63).
Antes de tudo, os direitos eram universalizados, não “pelo seu pertencimento como cidadão da república brasileira”(KOERNER, 2005, p. 63), mas presentes dados pelo Estado, projetados no usufruto futuro de todos.
Apenas durante o período democrático posterior a 1946, foram possíveis associações que extrapolaram este quadro. As ligas camponesas, lutas por reforma agrária e por reformas de base foram algumas das associações espontâneas ocorridas pelo interesse em cumprimento de direitos universalmente garantidos pela lei.
A Constituição de 1946, retorna com as garantias dos direitos políticos e civis, e restabelece o estado democrático de direito, e faz em seu corpo, referências claras aos direitos advindos das conquistas estabelecidas desde o século XVIII. No artigo 141, consta: “A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes”. (BRASIL, 1946, grifo nosso). O inciso, deste mesmo artigo ainda cita que “Todos são iguais perante a lei”.
Porém, por muitas vezes entre 1946 e 1964, esta democracia voltou-se a perseguição de organizações classistas e partidos políticos, como no caso da proibição dos direitos de greve por decreto do presidente Eurico Gaspar Dutra, sua interferência nos sindicatos, o fechamento da CGT (Central Geral dos Trabalhadores do Brasil), ou a cassação do registro do PCB, no ano de 1947, através da justiça, acusado-o de pertencer a uma organização internacional, e que só voltaria possuir um registro oficial após a década de 1980. Foram cassados também, no mesmo governo, os mandatos de todos os eleitos por esta sigla e barradas as tentativas de criação de partidos comunistas.
A instabilidade e a violência sempre estiveram presentes no processo de lutas e a reação de latifundiários e a todos estes movimentos era implacável e institucionalizada. Mesmo coibidas pela lei e pela constituição, quando da ocorrência de violências e assassinatos de líderes dessas lutas populares, ocorria a blindagem política que fazia uso das instituições políticas para frear qualquer tipo de avanço político dessas lutas e impediam a criminalização dos mandantes e dos praticantes da violência contra os movimentos populares. A título de exemplo, podemos citar o assassinato do líder da liga camponesa da cidade de Sapé (PB), João Pedro Teixeira, no ano de 1962, retratado no filme documental “Cabra marcado para morrer (1984). Servindo como exemplo também, neste caso, a própria história da produção do filme, iniciada em 1962, foi interrompida por intimidações e posteriormente, em 1964, pela prisão de integrantes da equipe e de todo o equipamento de filmagens sob a alegação de subversão.
Mais uma vez de maneira contraditória, durante os 21 anos de ditadura militar, o Brasil tornou-se signatário de convenções importantes. Os governos militares estabeleceram uma constituição que permitia a cassação dos direitos individuais, como consta no Artigo 151 da constituição de 1967.
Aquele que abusar dos direitos individuais previstos nos §§ 8º, 23. 27 e 28 do artigo anterior e dos direitos políticos, para atentar contra a ordem democrática ou praticar a corrupção, incorrerá na suspensão destes últimos direitos pelo prazo de dois a dez anos, declarada pelo Supremo Tribunal Federal, mediante representação do Procurador-Geral da República, sem prejuízo da ação civil ou penal cabível, assegurada ao paciente a mais ampla, defesa. (BRASIL, 1967, grifo nosso).
O mesmo regime militar que estabeleceu o AI-5 no ano de 1968, ratificou tratados internacionais, tanto do sistema global, quanto do regional americano, entre eles, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (1968), Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969). E já no contexto da abertura política, “lenta e gradual”, que se desenrola sob o controle dos presidentes militares Ernesto Beckmann Geisel e João Batista de Oliveira Figueiredo, entre os anos de 1974 e 1985, foram assinadas a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (1984) e a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984).
O comprometimento do Brasil com os direitos humanos a nível de Estado, ocorreu de fato apenas após a promulgação da Constituição de 1988, antes desse momento, o comprometimento dos diversos governos aos direitos humanos, ocorria muito mais pelo interesse de alinhamentos políticos, ideológicos e principalmente econômicos. Constantemente eram ratificados compromissos entre o Brasil e as nações com as quais havia interesses, e este compromisso era expresso por exemplo, através de declarações. Como exemplo, podemos citar a Declaração Conjunta de 23 de Fevereiro de 1960, assinada pelo presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek de Oliveira e pelo presidente dos Estados Unidos da América, Dwight D. Eisenhower, onde “[...] reafirmam a determinação conjunta das duas nações de defender os seguintes princípios”, item 1.:
As liberdades democráticas e os direitos fundamentais dos homens, em que se incluem a luta contra a discriminação racial e o repúdio a qualquer atentado contra a liberdade religiosa e a qualquer limitação à manifestação de pensamento. Essas são conquistas inalienáveis da civilização, que a todo homem livre incumbe proteger, com o pensamento voltado para o sacrifício dos soldados dos dois países na última guerra e para a necessidade de evitar a repetição das causas que arrastaram a imolação tantas vidas jovens e preciosas. (BRASIL, 1960)
E segue no ítem 3, afirmando “A plena execução dos princípios de solidariedade política e econômica, contidos na Carta da Organização dos Estados Americanos e do Tratado de Assistência Recíproca do Rio de Janeiro. (BRASIL, 1960).
O compromisso com os direitos humanos eram utilizados como um ótimo argumento diplomático, eram defendidos por tratados dos quais éramos signatários, aos quais ratificamos, mas que, entretanto, não estavam presentes em plenitude em nossa constituição e nossas leis, não passavam de códigos internacionais. Podemos dizer, que até a década de 1988, quarenta anos após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, estes eram apenas códigos internacionais e sua condição de internalização e cumprimentos em nosso arcabouço jurídico era pífio, contestável, sujeito às intempéries dos diversos governos e projetos políticos.
A Partir de 1988, entretanto, o Estado brasileiro é constituído com grande comprometimento e embasamento legal na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e na Carta de fundação da Organização dos Estados Americanos de 1948. E isto está muito claro em seu texto, que contempla tanto direitos civis, e políticos defendidos ainda no século XVIII, quanto constitui um Estado fortemente embasado em valores vigentes em seu tempo, como podemos perceber nos trechos abaixo.
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. (BRASIL, 1988)
O inciso III coloca a dignidade da pessoa humana como direito fundamental no texto constitucional. E em seguida, no artigo 4°, inciso II, confirma que o Brasil será regido em suas relações internacionais pela prevalência dos direitos humanos, e, indo ainda mais além, o inciso 3° do artigo LXXVIII, define que “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.” (BRASIL, 1988). Os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos são reconhecidos, e, após revisados e aprovados pelo poder legislativo, passam a obrigatoriamente fazer parte do ordenamento jurídico nacional.
Ainda no artigo 4º, são garantidos os princípios da autodeterminação dos povos (Inciso III), repúdio ao terrorismo e ao racismo (VIII), cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (IX) e a concessão de asilo político.
No Capítulo I, do título II da Constituição de 1988, que trata dos direitos e garantias fundamentais, outros direitos importantes são introduzidos, como podemos ver abaixo.
No Art. 5º podemos ler:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Inciso I - “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” (BRASIL, 1988)
A mulher é inserida, pela primeira vez, no texto constitucional com plenas igualdades, sem ressalvas, e passa a não depender de estatutos específicos em relação a seus direitos, como, por exemplo, ocorria anteriormente com a Lei nº 4.121, de 1962, também conhecida como Estatuto da mulher casada.
No caso do Inciso VI, ainda do artigo 5°, consta “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (BRASIL, 1988, grifo nosso). Neste inciso a ressalva presente nas constituições anteriores, tanto na constituição de 1946, quanto na de 1967, que fazia a ressalva de que os cultos seriam livres desde que “não contrariem a ordem pública e os bons costumes”, é retirado. Passa a constar aí a expressão “na forma da lei”, mais cabível ao estado democrático de direito.
O mesmo artigo ainda regula outros questões importantes como assegurar a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional (XIV); a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento (XVIII); no inciso XXIV, o interesse social, passa a ser critério válido para abertura de processo de desapropriação; a constituição também exige que todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (XXXIII); não haverá juízo ou tribunal de exceção (XXXVII); a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (XLI); a prática do racismo passa a constituir crime inafiançável e imprescritível; a tortura passa a se crime inafiançável e insuscetíveis de graça ou anistia e criminaliza os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
Outra importante contribuição da constituição de 1988, é a introdução de capítulo específico que trata dos direitos sociais. O Capítulo II - Dos direitos Sociais prevê, no artigo 6º, que “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. (BRASIL, 1988)
O inciso XX defende a “proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei” (BRASIL, 1988), além do reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho (XXVI); da proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (XXX) e também a proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência (XXXI).
Um dos maiores passos da constituição desse novo Estado brasileiro, alinhado aos direitos humanos, é a introdução dos direitos dos povos originários. O capítulo VIII, intitulado “Dos índios”, traz, no artigo 231, o reconhecimento de alguns de seus direitos. “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. (BRASIL, 1988). E prevê, no parágrafo 1°, que
São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. (BRASIL, 1988).
No parágrafo 2° cita que “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.” (BRASIL, 1988). O capítulo também prevê, no parágrafo 4º, que “as terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”. (BRASIL, 1988).
A garantia constitucional e legal dos direitos humanos em nosso ordenamento jurídico brasileiro é clara e coloca dessa maneira o país num patamar de alto nível em termos de legislação. Mas o cumprimento e o respeito a estes direitos têm demonstrado desde o início inúmeros percalços e retrocessos. A introdução desses direitos em nossa constituição não foi fortuita, ocasional, mas nasceu de lutas imensas, permanentes, travadas contra o desrespeito, a tortura, a perseguição, o assassinato, a restrição de direitos, o racismo, o preconceito, a violência, a fome, a opressão por governos que aparelham o Estado em seu favor e de suas visões retrógradas da constituição social do Brasil. As lutas de resistência aos “anos de chumbo”, se inscrevem com primeira importância na causas mais diretamente relacionadas a inclusão desses direitos, seja por parte dos povos originários, mortos e perseguidos aos milhares durante este período, seja pelas populações urbanas nas grandes e pequenas cidades do Brasil, seja pelas populações rurais e até mesmo por muitos dos militares que sofreram enormemente com as perseguições e os abusos diversos do poder e autoridade impostos aos cidadãos brasileiros. A Constituição Cidadã de 1988, afora suas falhas, seus vazios, seus silêncios e suas ambiguidades, constantes a boa parte das leis, documentos legais e doutrinas, significa, em muitos de seus pontos, a conquista da possibilidade de justiça, e na história brasileira, o nosso pontapé inicial em direção ao respeito aos direitos humanos, frutos da luta social e da resistência permanente. Como já dito por Bobbio, o grande desafio de nosso tempo em relação aos direitos do homem, mais que fundamentá-los, é protegê-los. (Bobbio, 2004, p.17)
Referências
REFERÊNCIAS
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